terça-feira, 11 de agosto de 2009

RELEMBRANÇAS

Edméia Teixeira Mourão
No tempo de namorados

Esta é para você, Roberto, meu marido querido e parceiro nesta realização.
Ao reler a história das nossas vidas, senti uma grande emoção. Foi como se, de repente, recompusesse todo um passado, dando maior consistência a esta bela vivência familiar...
A nossa caminhada de quase quarenta anos se consolidou intensamente, nesses meses em que me debruçava, revivendo a minha história, e a entregava a você numa simbologia significativa. Agora você me tem não apenas há quarenta anos... você tem toda a minha trajetória e o mais profundo das minhas emoções e sentimentos.
Tudo ganhou um maior sentido, com a sua participação, incentivo e carinhosa paciência.
Hoje é muito fácil dizer “eu te amo”. Difícil é fazê-lo com gestos, com atitudes. Com a cumplicidade de vidas que lutam, buscando superar as suas limitações, para atingir a plenitude.
Muito obrigada, também, por não ter desistido...
A minha vida está em suas mãos... ternamente.
Com amor,Edméia


Quarenta anos depois

Querido Luiz Eduardo

“Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!”
Fernando Pessoa
Que saudades de você, minha amada criança. Que vontade de deixar tudo como era antes. E pensar que tudo não passara de um grande engano. É, foi mesmo um grande engano... afinal, você está sempre presente, não obstante a sua ausência...
Estou terminando o pedido que você me fez em 2002, no dia do seu aniversário. Estávamos no varandão, quando você sentou ao meu lado e me disse que desejava que eu escrevesse um pouco sobre a vida da nossa família. Queria conhecer mais sobre a nossa história, para também contá-la ao Victor. Demorei muito, não foi Dudu? Ou você se apressou demais...? Refazer caminhos nem sempre é fácil, sobretudo quando alguns já chegaram ao seu destino.
Bem, mas você, de onde está, já deve saber mais do que eu. Não sei se no céu tem mangueiras, para você, seus avós e tios ficarem conversando...
Imagino até gargalhadas do Edson, do Edílson, misturadas com as suas...
Vou entregá-las ao Victor para ele conhecer sobre suas raízes, e, depois, contar para os filhos dele. Seus netinhos, Dudu!
Um grande abraço, pleno de alegres lembranças.
Com amor da tia Edméia (tia Pepéia).

“Ele dorme dentro de minha alma
E às vezes acorda de noite,
E brinca com os meus sonhos.”
Fernando Pessoa



Apresentação

A nossa memória é constituída de partículas quânticas chamadas “bósons”. Não sei se um “bóson” grava uma página de um livro, o livro todo ou uma enciclopédia. Mas, temos milhões e milhões de bósons. Por isso temos a capacidade de gravar toda a nossa vida, como um filme, desde o período uterino até o presente momento. Um simples folhear de um livro faz com que gravemos tudo o que está escrito. Poucas pessoas, no entanto, têm a capacidade de retirar destes “bósons” memórias gravadas para o seu consciente. A Edméia é uma prova viva de que os “bósons” existem mesmo. Ela é o tipo de pessoa de quem se diz ter memória fotográfica.
Devido a esta qualidade, eu e outras pessoas insistíamos, para que ela escrevesse suas estórias. Num certo dia de chuva, começo do ano de 2003, o cheiro da chuva fez com que acionasse um determinado “bóson”. Vieram lembranças aos borbotões, que foram sendo esparramadas em folhas e mais folhas de papel. E não mais parou de escrever. Uma verdadeira reação em cadeia. Cada “bóson” acionava um outro e este mais outro e assim por diante. Foi preciso dar uma parada, para preparar esta primeira edição das suas reminiscências.
As páginas contêm uma verdadeira viagem no tempo. São fatos e pessoas que surgem do passado familiar, cheios de realidade. Têm emoção, têm cheiro, têm calor, têm sentimento.
O que mais impressiona nestas “Relembranças” é o senso crítico de uma criança. Aquilo que, para o comum delas passa despercebido, na Edméia não. É um ponto de reflexão, de análise, de crítica. Não é o adulto de hoje que está analisando. Já era a criança que não concordava com a mudança de casa, já era a criança que percebia que a mãe estava cansada da labuta diária etc.
Ou seja, são relatos de profunda densidade. Você penetra nos ambientes, observa os móveis, sente o cheiro do cuscuz etc.
Outro ponto de destaque são duas personalidades fortes que saem das páginas: Sr. Edgard e Dona Estela. Um exemplo típico de um casal que se dedicou integralmente a criar uma enorme família. E não mediram esforços para ajudar a todos que pudessem, familiares ou não. O Sr. Edgard responsável, dedicado e uma dona Estela perspicaz, inteligente e fazendo “milagres”. Eu sempre disse que a Dona Estela fazia milagres em vida. Ela já vinha fazendo milagres muito antes de conhecê-la e continua a fazê-los...
Gostaria de destacar mais um ponto. Hoje as facilidades da vida moderna estão ao alcance de qualquer um. À época, mesmo tendo dinheiro, não se conseguiam as comodidades que temos em qualquer lugar. Você praticamente tinha que tirar do nada tudo o de que precisava. Uma festinha com refrigerante? Tinha que fabricar... o aluá. Um ralador de coco? Tinha que fabricar com pedaço de flandre, de lata, prego e martelo! Grãos e verduras não eram comprados por telefone e, sim, produzidos no cabo da enxada! Ouvir um simples rádio significava construir um cata-vento (de madeira) que acionava um pequeno dínamo que carregava a bateria... E a cozinha ambulante? A cada semestre era num lado da casa. E era fogão a lenha... Bom, leiam esta e muitas outras estórias.

Ivens Roberto de Araújo Mourão

Sr. Edgard e Dona Estela em 1979



Meu pai e minha mãe, em 1957

Aos meus pais que, não obstante as suas lidas encontravam tempo para conviver e conversar com os filhos. E desse viver e ouvir amoroso brotaram essas Relembranças. Doces lembranças...
“Semear a terra,
Certo de colher
Da semente o fruto
E depois descansar.
Nova esperança,
Bate o coração
Renascer cada dia
Com a luz da manhã.”

Milton Nascimento

Introdução


O Roberto sempre me pedia para escrever um pouco das minhas lembranças sobre a nossa família, que ele adotou como extensão da sua. Eu achava que não tinha jeito para isso.


Eu, no dias das mães de 1967, já pensando em escrever estas Relembranças.

No dia 18 de abril de 2002, quando comemorávamos o nascimento do meu sobrinho Luiz Eduardo (Dudu), ele pediu-me um pouco da sua história familiar. Havia em sua voz tanta ternura que desejei ardentemente poder atendê-lo.
Outros pedidos vieram de: Ednilda, Edilson Junior, Maurício César, Ada Raquel, Jair, Ana Cláudia, Vinicius, Cláudio, Edgar, Alexandre Emerson e Sérgio.
Ao encontrar o Toninho, em Resende/RJ, esse falava das fortes recordações dos tempos felizes que, em criança, passara em Pajuçara, na casa dos seus avós. Ao lhe enviar alguns fragmentos de lembranças, respondia que estava arquivando para os seus filhos, o Arthur e a Maria Clara. O Pedrinho tinha o mesmo interesse, inclusive sobre seu bisavô, Maestro Salviano, de quem é herdeiro do talento musical. Senti vontade de escrever sobre a sua família, já que conviveram com ela apenas nas férias de fim de ano. Contudo, não me sentia capaz.
Quando as chuvas do ano de 2003 começaram a cair fortemente, meu coração se alegrou... E, repentinamente, o ruído da chuva nas telhas da Pajuçara foi ressurgindo em minha memória. O aroma das flores do sítio dos meus pais invadia o nosso apartamento sem pedir licença...
Apoderaram-se de mim e fizeram transbordar para o papel pedaços de saudades. Os momentos iam surgindo, como a água brotando da terra, inundando a minha vida, derrubando minhas barreiras.
Elaborei uma seqüência de itens, porém eles são incontroláveis, se atropelam uns aos outros querendo que se lhes dê prioridade. Enfim, tomaram conta de mim, essas crianças malinas! Fazem-me abandonar os pincéis, as panelas, os trabalhos de casa...
Isto é o fim do mundo! “Tibis! É um disputismo”, como diria a vovó Zefinha, diante de fatos inusitados...
Ainda há muitas memórias a relatar. Mas, quem sabe, outras virão depois...
O meu agradecimento ao Roberto, que, ao encontrar pedaços de lembranças, começou a digitá-las e organizá-las. Sem ele, teriam se perdido, como aconteceu com muitos outros.
E às minhas irmãs, Estella Maria e Edna, que me ajudaram a confirmar a veracidade dos fatos.
A vocês, pedaços de vida da qual também fazem parte.
Com amor:


Edméia Teixeira Mourão
Fortaleza, 03 de abril de 2009.(104 anos do nascimento do meu pai)

I - Tudo Começou Assim...


“Há canções e há momentos.
Que eu não sei nem explicar,
Em que a voz vem da raiz
Ela vai ao infinito
Ela amarra todos nós”
Milton Nascimento

O Brasão da Família Teixeira

À época do descobrimento do Brasil, havia em Portugal 70 famílias consideradas ilustres, por terem prestado relevantes serviços ao país. Nesse tempo, Portugal era destaque entre os países da Europa, sobretudo por ser uma potência marítima. Estava à frente na tecnologia de fabricação de navios e de conquistas marítimas.
O rei dom Manuel I outorgou brasões de nobreza a essas famílias. Mandou pintá-los no salão nobre do seu palácio. Dentre eles, o da família Teixeira. Em recente viagem a Portugal, a minha irmã Ednir esteve na Rua dos Teixeiras, que existe em Lisboa.
De lá, veio o nosso bisavô, José Bernardo Teixeira, do qual descendemos, pela linhagem paterna, e o seu sobrinho, José Bernardo Teixeira Sobrinho, pai da vovó Zefinha
Os dados referentes ao brasão foram obtidos do Diário do Descobrimento, publicação especial comemorativa dos 500 anos do Brasil.


A origem da família Teixeira e sua saga, em terras cearenses. São apenas alguns dados obtidos através de uma pesquisa superficial e lembranças do que o meu pai contava sobre ela.

A Nascente Dourada...
Nossos Ancestrais Paternos.

O meu bisavô, coronel José Bernardo Teixeira, era de origem portuguesa. Chegou ao Brasil juntamente com cinco irmãos. Desses, sei que dois ficaram no Rio de Janeiro, um em Recife e dois vieram para o Ceará. Um foi para Itapipoca e o meu bisavô ficou em Fortaleza. Segundo a vovó Zefinha, este era “senhor de muitos bens e de muitas terras”, tanto em Ipu, quanto em Fortaleza.
Não sei por que, mas tenho por ele um sentimento de muito afeto e carinho. Imagino-o como um homem bom, íntegro, sério e sonhador.
Do seu casamento com a minha bisavó, Ritta Josephina, tiveram muitos filhos. Foram cinco homens: Arlindo, Alfredo, Antônio Augusto – meu avô -, Francisco e Bernardo José. Também sete filhas, dentre elas: Raimunda, conhecida como Mundolinha, Amália, Felina e Amélia.
Dos filhos, Antônio, Alfredo e Arlindo foram estudar em Portugal, na Universidade de Coimbra. As filhas estudaram em um colégio, onde só se falava francês. Meu pai dizia que era Sacre Coeur. Não sei se no Rio de Janeiro. Nele, a formação educacional era muito ampla.
O meu bisavô tinha um carinho muito especial pelas suas filhas, não querendo que se casassem. Delas, apenas uma se casou, contra a sua vontade. Foi a Amélia, que não deixou descendência.
O vovô Antônio Augusto casou com a vovó Zefinha, que era muito mais nova do que ele. Tinha apenas 15 anos e famosa pela sua beleza e educação. O seu pai era sobrinho do meu bisavô paterno, tendo também o mesmo nome e patente (*): Coronel José Bernardo Teixeira Sobrinho, casado com Francisca Medeiros Teixeira.

* Segundo o meu primo Alcino essas patentes não eram compradas, mas outorgadas por merecimento.


Viviam muito bem, até que foi descoberta, nas terras do Ipu, uma mina de ouro a que denominou “Minas do Bom Jesus”. Não era ouro de aluvião, mais fácil de ser explorado. Eram veios de ouro incrustados na rocha. O meu bisavô enviou amostras para a Inglaterra, a fim de submetê-las a estudo. A resposta da análise dizia tratar-se de um ouro primário, muito especial, do qual só se conheciam três minas semelhantes. Meu bisavô encheu-se de entusiasmo e mandou buscar, nesse país, todo o maquinário necessário para a sua exploração, inclusive Engenheiro de Minas, que não existia no Brasil. O meu pai contava que esse engenheiro e técnicos exigiam tudo do bom e do melhor. Não podia faltar champagne francesa com biscoitos champagne, que a esse tempo eram importados também. Chegavam de navio caixas e mais caixas de champagne e de biscoitos. Era o maior luxo! A exigência para as suas acomodações era grande. O casarão do Ipu teve que se submeter a uma reforma para atender às condições exigidas.
Após a extração de uma quantidade de ouro, o meu bisavô tirou uma parte para a decoração da Igreja de Nova Russas. O meu sogro, Alexandre Mourão, chegou a ver essa igreja e disse que era uma maravilha! Havia uma placa de agradecimento ao Coronel José Bernardo Teixeira pela doação do ouro.
A minha bisavó e as tias ganharam correntes de ouro de metro! Chamavam, à época, correntes de prender papagaio, por serem bem grossas. O coronel mandou fazer as fivelas das suas botinas e do cinto, de ouro!
Quando tudo ia às mil maravilhas, o engenheiro adoeceu de malária, vindo a falecer. Então começou tudo de novo. Foi contratado outro engenheiro, após as devidas explicações sobre a morte do anterior. Recomeçada a exploração, regada a muita champagne francesa, há uma maior retirada de ouro. Até que um escravo matou o engenheiro inglês. Depois de todo um processo, lhe enviaram outro engenheiro da Inglaterra. Esse, acometido de melancolia, se suicidou no navio, quando se aproximava de Recife. O meu pai lamentava a sua morte. Dizia que as longas viagens de navio muitas vezes provocavam esse sentimento. E comentava: “Foi uma pena, pois já estava tão pertinho! Já dava para avistar as luzes da cidade do Recife...”
Um engenheiro brasileiro, formado na Inglaterra, recomeçou a exploração da mina. Conseguiu tirar muito ouro, só que, ao ver a imensidão do pó dourado, ficou louco! Dizia para a sua irmã: “Odetinha, eu vou mandar lhe fazer sapatinhos de ouro! Você vai viver coberta de ouro!” E ficava se balançando numa rede, sonhando com o manancial dourado. De lá, saiu para o hospício.
O velho Coronel José Bernardo Teixeira, meu bisavô, cansado, desistiu. Deu a mina por maldita.
E, lentamente, foi perdendo todos os seus “veios de ouro” que estavam à flor da terra.
Primeiro, perdeu o casarão sede da família, no então alagadiço. Hoje ele é a Sede da Faculdade de Agronomia.
Depois a casa onde nasceu o meu pai, no Barro Vermelho. Nela, em terras que se estendiam até a Bela Vista, havia um grande engenho de cana de açúcar. Posteriormente, passou a sediar o Esquadrão da Polícia e, atualmente, o Quartel da Polícia Militar. As terras que hoje são a Avenida Mister Hull e Av. Bezerra de Menezes, até o Hospital São Gerardo, foram sendo entregues aos bancos e aos sócios, por conta de títulos não resgatados. Lá estava a verdadeira mina de ouro. Perdeu as fazendas do Ipu, à exceção da parte da mina e outras casas da Av. Dom Manuel, inclusive a do atual colégio Castelo Branco. Essa, última propriedade da família a servir de residência do meu avô, Antônio Augusto, da minha avó Zefinha e dos filhos, entre eles, o meu pai. Aquele que fora “senhor de muitos bens e de muitas terras” perdeu tudo, em busca de um sonho dourado...
Dois palacetes que preservou para as filhas que não casaram, tinham os telhados trabalhados e bordas de madeira entalhadas com esmero. A sala de tábua corrida, quando a gente pisava fazia um barulho. No quintal, mangueiras-rosa, tão rosas e perfumosas, como já não há mais. E mangueira espada. Das duas espécies, meu pai levou para a Pajuçara. * Dos belos palacetes, restou uma placa com os seguintes dizeres: “Jesus, prisioneiro do amor Divino, não permitais que me separe de Vós”.

* A tia Amália, segundo meu primo Alcino, faleceu hospitalizada na “Casa de doenças”, construída sobre os destroços dos seus lindos palacetes e do maravilhoso pomar ali existente. Imagino que, embora acometida do que hoje se chama Alzeimer, o seu espírito, ou os seus bósons, como diz o Roberto, sabia que aquele lugar já fora a sua casa, o seu sítio. Hoje é o Hospital São Gerardo, para doentes mentais.


As minhas tias avós utilizaram o que aprenderam no colégio, com as irmãs francesas, para o seu meio de vida. Eram exímias doceiras, executando balas de licor, que desmanchavam na boca. Essas se tornaram famosas, citadas na literatura local e pelo escritor Pedro Nava, em seu livro “Baú de Ossos”:
“Nas festas e casamentos da alta sociedade cearense, não podiam faltar as famosas balas de licor das Teixeiras, do Alagadiço.”
Aquelas moças finas passaram o resto das suas vidas trabalhando para a sua manutenção. E ainda, pelo que vi nas cartas, sendo exploradas por advogados, lutando pelas minas de ouro do seu pai.
As minhas tias avós mantinham um relacionamento “cordial”, com a vovó Zefinha e as suas sobrinhas. Em poucas ocasiões do ano, as tias contratavam previamente um carro de praça, do Posto Victória, ali perto da Igreja do Rosário. Quando o Prefect chegava, saíam todas para visitar “as meninas”, lá no Alagadiço (São Gerardo). A primeira vez que a minha irmã Estella Maria foi com elas, ia radiante, pensando em brincar com as meninas. Qual não foi a sua surpresa ao perceber que “as meninas”, assim chamadas, eram bem mais velhas do que as minhas tias...
Também estivemos lá com os meus pais, umas duas vezes. E a tia Mundolinha foi lá em casa, no Porangabussu, uma vez. Ela era bem idosa e usava uns brincos cor de rosa, que me deixaram encantada. Disse que me daria. Pensei que seria antes de ir embora. Mas ela esqueceu. Eu, porém, que tinha uns quatro ou cinco anos, não esqueci da lindeza que eram aqueles brincos...
Como não casaram e cuidaram do meu bisavô até a sua morte, ficaram com o ouro e as jóias que restaram da mina do Ipu. Esses bens e os palacetes doaram a uma filha de um irmão do vovô, tio Alfredo, que a criaram como filha.
Em Ipu, o meu irmão Edilson chegou a ver as sucatas das maquinarias inglesas. O meu primo Alcino as viu, cercadas, sob a responsabilidade de um órgão do Governo Federal. Tudo o que restou de um sonho...
O vovô Antônio, acostumado a viver de rendas, não teve a facilidade de se adaptar à nova vida. Nem tão pouco de utilizar a educação – “tesouro que a traça não corrói” -, como dizia o meu pai, para construir uma vida confortável para a sua família. Envolvido na política, com ela não obteve o sucesso desejado.
A minha avó Zefinha desceu do seu salto alto e das nuvens doiradas, para preparar, na cozinha, cocadas, tijolinhos e bolos, fazendo seus “tabuleiros”, que o meu pai, com 10, 12 anos, ia entregar nas casas de merendas para vender. Pelo que entendi das suas estórias, o meu avô nem tomava conhecimento dessas suas atividades. Com o dinheiro obtido, proporcionava uma alimentação e vida melhor para a grande família.
Aos 12 anos de idade, quando ia entregar os “tabuleiros”, meu pai chamou a atenção dos funcionários da Companhia Inglesa. Queriam comprar todos os seus doces. Em seguida, ofereceram emprego “àquele menino esperto e trabalhador”. Ao observarem que ele, enquanto não estava atendendo, tentava decifrar a linguagem dos gringos, nas revistas que forravam as caixas de maquinarias, começaram a ensinar-lhe aquele idioma pelo qual se interessara - o inglês. Ao receber o seu salário, não queria mais que a sua mãe fizesse os tabuleiros, por achá-la cansada, cuidando de uma porção de crianças. Mas a vovó Zefinha apenas diminuiu a produção. O dinheiro do meu pai também era útil em casa. Trabalhava depois das aulas. Ao chegar à Companhia Inglesa, os gringos diziam: “How are you, boy?” Um dia lhe presentearam com uma calça comprida, uma botina e um boné. Disseram que, como já trabalhava, era um homem, devendo usar calças compridas e botinas. Àquela época, o uso da calça comprida só era permitido após os 14 anos. Nesta companhia, “aquele menino esperto” conheceu e conviveu com uma figura histórica, famosa na cidade - o “bode Ioiô”, adotado pelos dirigentes como seu mascote. Fora comprado de um sertanejo, que veio para Fortaleza fugindo da seca de 1915. O bode, seu único bem, foi comprado pela Companhia Inglesa. Era um bode especial, de hábitos originais. Diariamente fazia o seu trajeto até à Praça do Ferreira, onde ia se divertir. Lá, muitos amigos o encontravam. Bebia e fumava com os boêmios... Após morrer de cirrose, foi empalhado e, até hoje, é a maior atração do museu do Ceará.
Enquanto isso, as irmãs do meu pai iam nascendo e crescendo. E os irmãos mais velhos já tomavam os seus rumos.
Com a perda do casarão da Av. Dom Manuel, onde moravam confortavelmente, o meu avô Antônio entrou numa fase de profunda tristeza. Teve que mudar para uma casa pequena, alugada, na Rua Dona Leopoldina, com a qual não se conformava...
Sobre este fato adveio uma derrota política. E, no dia 7 de junho, acometido de pneumonia após ficar horas observando a chuva que caía fortemente, faleceu, aos 45 anos. Ainda não existia a penicilina.O meu pai, então com 18 anos, teve problemas para sepultá-lo. O chamado “Mausoléu da família Teixeira”, no cemitério São João Batista, não dispunha de vaga. O quase adolescente Edgard olhava para o relógio do seu pai, todo de ouro, pendurado na corrente também de ouro, dentro da cristaleira. Mas não queria se desfazer dele, pois, segundo dizia, o vovô lhe tinha muito apreço. E, realmente, era uma obra prima. Levou-o à Companhia Inglesa para deixá-lo como garantia de um empréstimo, a fim de comprar o túmulo no cemitério São João Batista, onde o seu pai, Antônio Augusto Teixeira, seria sepultado. Os dirigentes da referida Companhia não aceitaram o relógio. Compraram o túmulo, que o meu pai descontaria do seu salário, já aumentado em virtude de agora ser chefe de família. Este relógio foi vendido anos depois, por ocasião da doença da tia Alzira, nas inúmeras tentativas de salvar a vida da sua irmã, que veio a falecer aos 16 anos, acometida de septicemia, devido a uma espinha no nariz.


Segundo o jornal Diário do Nordeste, o bode Ioiô freqüentava muito o café Java, onde se discutiam assuntos políticos e intelectuais. Bebia e fumava muito. Em 1922 foi o mais votado vereador da cidade. Morreu em 1931, talvez de cirrose. Há quem suspeite também que a sua morte tenha sido um crime político, pois já despontava como o mais votado para Governador, nas eleições de 1932. Outra característica do bode Ioiô, era ser assíduo freqüentador de velórios e funerais. Apesar de à época estarem em vigor leis que proibiam o trânsito de animais no centro da cidade, ao bode Ioiô era permitido. Aliás, sua presença era festejada pelos intelectuais, políticos e toda a população. Também, quem poderia conter a determinada personalidade do bode Ioiô, que reinava altaneiro na Praça do Ferreira, bares, cafés e no Cemitério São João Batista?
Outra façanha do bode Ioiô: ia ser inaugurado, com grande pompa, o Cine Moderno, o mais luxuoso cinema da cidade. E ele foi para a inauguração. Ao querer adentrar, foi barrado. Como protesto, comeu a fita inaugural, antecipando-se às autoridades que já estavam apostas para cortá-la.

Os amigos do vovô Antônio decidiram arrumar um emprego para o meu pai, agora arrimo de família, na mesma repartição onde o vovô trabalhava – Departamento Nacional de Portos, Rios e Canais.
Para isso, precisou parar com os estudos, foi registrado pela minha avó Zefinha e começou a trabalhar, após saldar a sua dívida com a Companhia Inglesa, de que gostava muito. Sua gratidão, porém, perdurou por toda a vida...
Onze anos depois, as irmãs o aconselhariam a casar, para constituir a sua própria família. Continuaram morando juntos, com períodos de interrupção, quando saía em viagem com a família, a trabalho.
Não sei se as irmãs do meu pai tiveram a consciência do quanto houve, por parte dele, de dedicação, amor e renúncia para com elas e para com a vovó. E também da minha mãe, que foi sua parceira e uma dedicada esposa, nora, cunhada e tia. Sei bem dos sobrinhos, que sempre tiveram por ela um profundo apreço e gratidão. Quando iam passar férias lá em casa, recebiam da tia Estela todo o carinho e atenções, das quais, até hoje guardam as melhores lembranças.
“Para viver é preciso, pelo menos, um pouco de esperança”
João Ubaldo Ribeiro


As Minas do Bom Jesus

“Alguma coisa escapa ao naufrágio das ilusões”
Machado de Assis


Após inúmeras buscas e muitas expectativas, que frequentemente resultavam em desilusões, consegui uma caixinha com cartas referentes à mina de ouro do Ipu. Segundo informações que havia obtido anteriormente, nesta tão esperada caixinha estaria guardado um precioso tesouro - cartas escritas de próprio punho, pelo meu bisavô, ao enviar as amostras de ouro para a Inglaterra. Também as que vieram de lá, dando o resultado da análise. Mas, só restaram as mais recentes (1936), tratando da regularização da mina. Ao abri-la, após tantos anos que o meu primo Alcino a guardava, fiquei fascinada e emocionada. Pozinhos de ouro brilhavam, como minúsculas estrelas! O seu brilho, deslumbrante! Mostrei ao Roberto, que também se admirou. Aqueles raros fragmentos dourados pelos quais meu bisavô se apaixonara, bateram bem forte dentro de mim. E senti por ele um grande carinho, uma profunda ternura. Um grande amor. Ele era um apaixonado sonhador, como a sua bisneta.
Algum tempo depois, a Paulinha(*), esposa do Alcino, me entregou outra caixa com documentos. Porém, não encontrei as cartas do meu bisavô. Mas, através delas, tomei conhecimento de alguns fatos sobre ele e a tão propalada Mina de Ouro, que muitos até julgavam ser uma lenda. Não! Não foi uma fantasia! Este fato proporcionou-me uma emoção e alegrias imensas. Creio até que poderia compará-la ao deslumbramento que sente quem, por muito tempo estivera no escuro e vislumbrasse, ao longe, a luz do amanhecer...

(*) Juntamente com a caixa de cartas, a Paulinha, na sua generosidade (já decantada pelos meus pais e pela Edna, que teve o privilégio de ser sua vizinha, no Rio de Janeiro), entregou-me um álbum de fotos da Peregrinação que a minha tia Maria Augusta fez pela Europa. Acredito que, do muito que trabalhou, foi a única coisa boa que proporcionou a si mesma, além da sua Biblioteca e das férias que passava em Campos do Jordão e Águas de Lindóia. O álbum, num primoroso trabalho de marchetaria e organizado com maestria, é um tesouro inestimável. Muito obrigada, Paulinha! Você faz jus ao cargo que exerce: Defensora Pública!
O estado de conservação das cartas e escrituras é muito precário, mas dá para comprovar a veracidade das estórias que ouvia o meu pai contar, desde que eu era criança. Porém, creio que somente um especialista poderá desvendar as minúcias nelas contidas, devido às manchas de tinta de escrever e a estragos feitos pelas traças. No entanto, foi muito importante o acesso a essas informações.
Algumas coisas de que não tinha conhecimento vieram à lume. As terras do meu bisavô foram provenientes de Títulos da Sesmaria de Maracacueiro, na Comarca do Ipu, concedidas pelo Governo Imperial, por meio do Decreto nº. 3779, de 23 de abril de 1868.
O Cel. José Bernardo Teixeira, ao descobrir a mina de ouro, a que denominou “Minas do Bom Jesus” –, criou uma empresa – TEIXEIRA, se associando a algumas pessoas. Como garantia, negociou a terça parte dos lucros que auferisse da sua exploração. Em outras cartas, faz cessão de algumas terras, propriedades e benfeitorias em pagamento à parte dos sócios, como também, dívidas bancárias.
Numa última procuração, o meu bisavô, José Bernardo Teixeira, transfere ao meu avô Antônio Augusto Teixeira e à minha bisavó, Ritta Josephina Teixeira, plenos poderes para efetuar quaisquer negociações com as terras e bens de sua propriedade, a fim de saldar os compromissos. Creio que estava bem doente, já que o escrivão, Alexandrino Diógenes, fora chamado ao sítio São José, no Alagadiço Grande. A assinatura foi feita a rogo, pelo meu avô Antônio Augusto, em virtude do meu bisavô estar doente da vista, não podendo assinar. Tal procuração foi passada no dia 24 de janeiro de 1903. Dois anos e três meses antes do nascimento do meu pai.




Em outro documento, a minha bisavó, já viúva, vende outras terras, em pagamento à família do Engenheiro em Mineralogia brasileiro, Heráclito de Carvalho, que adoeceu ao ver a quantidade de ouro que saía das máquinas. Tendo em vista a negociação que o meu bisavô fizera, de dar a terça parte dos lucros obtidos na exploração da mina, com a sua doença, o dinheiro e propriedades foram entregues à sua mãe, irmã e cunhado, seus herdeiros. Depois foram sendo vendidas diversas propriedades, para efetuar pagamentos a sócios e, provavelmente, para a sobrevivência da família.
Ademais, documentos testemunham gestos magnânimos de alguns sócios, como Boris Frères & Cia e Thomaz Ricardo Brandt, entre outros, que abriram mão da parte a que teriam direito nos lucros do empreendimento. Diante do insucesso, não aceitaram as terras que lhes seriam destinadas. Julgaram que o investimento era de risco, podendo obter lucros ou não.

Trecho da carta do advogado Edmar Morel que tratava do registro da Mina no Rio de Janeiro ao advogado de Fortaleza, Dr. Paulo Elpídio de Menezes.

O fato de ter em minhas mãos essas cartas, algumas delas com trechos totalmente ilegíveis, foi muito valioso para mim. Aqueles fragmentos de documentos referentes às minhas origens, às minhas raízes, me comoveram. Fui me envolvendo e, sem me aperceber, voltei ao passado. E, lentamente, o meu bisavô foi ganhando vida novamente. Passei a imaginá-lo, não apenas como um ancestral distante. Essa centelha de vida foi me incendiando, tomando forma real, concreta. Senti em mim a sua obstinação e determinação; as suas esperanças, angústias e, finalmente, a sua capitulação. Concedo-me o direito de ser piegas... A emoção que senti ao pegar a primeira caixa de cartas, a felicidade ao ver os raros fragmentos de ouro... Ouro em pó que jorrou abundantemente da Mina Bom Jesus, esparramando-se pelo chão... Que paradoxo... Da mesma maneira emocionei-me ao pegar tantas cartas, documentos, parte da história da nossa família, que outrora eram tão claros, e hoje se constituem retalhos de uma utopia...

Assinatura da minha bisavó, Ritta Josephina, vendendo parte das propriedades.

Não obstante o longo tempo passado, uma utopia que ainda flameja, ainda é vida. A retomada de uma vida que, por longos anos tinha sido apenas um nome na minha trajetória.
De repente, aquele personagem quase mítico tornou-se real. E, num crescendo de emoção, fiquei a imaginar o meu bisavô: a viver os seus sonhares, os seus devaneios...
Foi como se desse uma virada no tempo e passasse a encontrar, nos seus descendentes, traços marcantes da sua personalidade... A mesma crença numa utopia que, suponho, acalentava os seus sonhos e as suas esperanças, constituindo-se o sentido do viver, do trabalhar, do lutar...
Em outra carta, um “patrício” do Cel. José Bernardo Teixeira, Hubert Nardelle, oferecia uma máquina para exploração de ouro, que conhecera numa feira em New York e Londres. A de New York ficou famosa. Na ocasião, o Imperador Pedro II compareceu e encontrou-se com Grand Bell. Chegou a conversar com ele, ao telefone, dizendo a famosa frase de Shakespeare: “To be or not to be”.
“Este senhor, Antônio Polldrelle, inventor privilegiado de uma máquina para tirar ouro, última perfeição, a qual se recomendou a ele. Sabendo que vinha para o Brasil, encarregou para ver se podia introduzir neste país, tão rico em minerais.
O preço - 500 mil francos - e uma participação nos lucros. Pode parecer um absurdo, é bem verdade. Mas considerando-se que, bota-se nela, simplesmente a pedra e sai o ouro limpo e puro! E tem a capacidade de triturar 500 toneladas de pedra por dia!”
O inventor da máquina oferece sociedade de 350 contos de réis, no empreendimento. Também poderá realizar os trâmites necessários para a exploração, bem como a contratação de engenheiro de Mineralogia e outros técnicos, sem que o meu bisavô precisasse ir à Europa.
“Vossa Senhoria sabe e nós já temos experimentado, aqui no país, encontra-se, quando muito, boas pessoas, bastante pródigas em palavras, mas que para realizar os fatos não são próprias, pelo menos tratando-se de negócios desta índole.”
Finalmente, o “patrício” oferece-se para ajudar eximindo-se da participação a que teria direito na venda.
Não sei se o meu bisavô comprou a máquina que este seu patrício, tão solícito, estava negociando.
Sei, porém, que o fascínio desse ouro provocou muito sofrimento. O meu bisavô deve ter passado o resto dos seus dias em meio a muita tristeza. Ver tudo o que construíra com tanto desvelo, desabando. As casas já citadas, que perdeu, eram de uma beleza e bom gosto muito grandes. Caprichara, nos mínimos detalhes.
Enfim, o que restou da Mina do Bom Jesus foi uma história de muitas esperanças, sonhos, ilusões, como também muitas perdas materiais, angústias e decepções...
O que quero registrar é a memória de fatos vividos pela nossa família, antes que caiam no total esquecimento. Também quero ressaltar a determinação, a tenacidade, a perseverança, que recebemos por legado...
Quantas vezes, diante das dificuldades tentei desistir... Contudo uma necessidade visceral de prosseguir apoderava-se de mim, sorrateiramente, sem que eu pudesse contê-la. Era como se estivesse entranhada na minha alma, no meu sangue... Como poderia anular parte da minha vida? Como deixar no esquecimento uma saga de lutas, conquistas e também de desencontros e desencantos? Como deixar no esquecimento o trabalho dos nossos bisavós e das nossas tias avós que, até meados do século passado, conforme as cartas comprovam, pagavam com o seu trabalho, advogados (inclusive os selos) na tentativa obstinada de registrar as Minas de Ouro do Bom Jesus, o que realmente conseguiram. Como deixar no vazio os seus anseios de legar às gerações futuras um brilho que as alumiasse na busca da prosperidade perdida?
Assim, abracei a caixa de cartas com a felicidade de poder retomar, de certa forma, uma história que ficou inacabada... Sei que é impossível resgatá-la, porém posso registrar a abnegação dos meus ancestrais que, com espírito visionário, lutaram para tornar esse sonho uma realidade.
Enfim, tudo isto restou das Minas do Bom Jesus!
Debrucei-me numa busca incansável, porquanto a memória viva é quase inexistente. Contudo, desejo que os descendentes do Cel José Bernardo Teixeira tenham algo do mais concreto que consegui, para embalar os sonhos daqueles que acreditaram. Que mantiveram acesa a chama da utopia... Afinal de contas, essa história é nossa!



“E o desejo infinito de ser pássaro...”
Raynbrand Tagore



O Álbum da Tia Maria Augusta, contando toda a viagem à Europa.



Procuração em que o meu bisavô José Bernardo Teixeira transferiu à sua mulher, Ritta Josephina Teixeira e ao filho Antônio Augusto Teixeira, para venderem ou arrendarem as Minas de Ouro do Bom Jesus em Ipu. A assinatura foi feita a rogo pelo meu avô, Antônio Augusto Teixeira, em virtude do meu bisavô estar doente da vista, não podendo assinar.

Sinfonia Materna
Nossos Ancestrais Maternos

O Maestro Salviano, para nós, vovô Rufino, era uma figura... Dos netos o mais parecido com ele eram os meus irmãos Edson e Edna, na suas maneiras de falar e contar as estórias. O vovô era um grande contador de “causos” e o fazia com a maior graça. Inteligente e observador, relatava fatos incríveis de quando, mais moço, fora morar algum tempo no Norte do país. Mais precisamente em Belém e Manaus, onde criou algumas bandas de música. As estórias das onças pintadas que apareciam no quintal da casa, das cobras jararacas, cascavéis e surucucus imensas, que engoliam um bezerro inteiro, passando dias paradas, digerindo-os. Dizia que a pobre vítima ficava perceptível no seu corpo. E a cobra levava quase um mês para procurar outra caça. Aliás, bastava ficar olhando fixamente e o seu olhar atraía o animal. E então, era só dar o bote e... vupt... Contava sobre os jacarés, que também engoliam um boi inteiro, ficando, posteriormente, vários dias a chorar...

Da esquerda para a direita: minha mãe, vovô Rufino, uma prima e Tia Maria Amélia.

Tempos felizes, quando das visitas do vovô Rufino, em Pajuçara
Diante do nosso assombro, o vovô ainda exagerava mais... Dizia que as cobras eram capazes de hipnotizar, atraírem com o olhar até pessoas! Morríamos de medo...
Meu pai pedia que era bom parar, senão, à noite não conseguiríamos dormir. Nem nós nem ele, que era a quem chamávamos, quando tínhamos medo: “Pai, tô com medo...” e ele, lanterna na mão, acendia a lamparina e ficava tirando o sonho ruim da nossa cabeça. Quando dormíamos, era que ele voltava para sua rede, ou para a cama.
O vovô Rufino era neto de franceses, pelo lado materno. No entanto, até ele, creio ter havido uma miscigenação, pois suas características fisionômicas não apresentavam traços marcantes da raça de origem. Tinha algo indígena, era moreno claro, seus cabelos eram muito lisos. Os parentes dele que conheci, pelo lado paterno, também tinham cabelos bem lisos. A inteligência, a sagacidade, o dom da comunicação eram suas características, associadas ao grande talento musical. Também era carpinteiro, fazendo móveis entalhados com perfeição. Temos um seu bisneto, artista em madeira.
Seus pais eram fazendeiros na Serra de Baturité, um oásis com temperatura média de 19°C, no semi-árido brasileiro. Nele se misturam elementos naturais da Floresta Amazônica com a Mata Atlântica, formando um pequeno país verde, com altitude de até 1115 m, na formação rochosa do Pico alto. Dizem que esta composição é única no mundo, mas não posso afirmar. Localiza-se a 3° abaixo da linha do Equador, a 120 km de Fortaleza. Dos 13 municípios desta região, sete estão em APA, constituindo-se uma micro-região conhecida como Serras Úmidas.
De lá o vovô saiu para estudar em Canindé, na época um centro cultural, artístico e religioso bastante desenvolvido. Isso, em virtude da vinda de um grupo de frades franciscanos alemães, para a implantação de um Seminário Franciscano, do Colégio Feminino de Santa Clara e de uma grande Basílica, réplica da catedral existente na Alemanha. Não sei se estudou música em outro centro. Foi para Canindé estudar no Seminário, para ser frade. Percebeu não ser a sua vocação, porém o contato com artistas alemães e italianos, vindos para construir, pintar os afrescos, fazer os vitrais lhe era estimulante. Ele já era o Mestre de Música Salviano. Certo dia, foi com um dos frades acertar uma apresentação em uma fazenda de um filho de portugueses, o Major João Guerra. Este lhe apresentou os cinco filhos homens e as cinco moças. O vovô dizia que: “Quando as moças apareceram, parecia uma miragem! Cada qual mais bonita do que a outra!” Porém uma lhe chamou a atenção, pelo lindo sorriso. Tinha uma mancha de tisna na testa, pois estava torrando café (tisna era como se chamavam as manchas pretas que ficavam no tacho de torrar café). O major Guerra pediu um café e ela, prontamente, foi servir. Ao sair dali, o vovô disse para o frade que queria largar a batina, a fim de casar com aquela moça, a da mancha. Era a vovó Maria Quintino. O nome Quintino fora tirado do santo do dia do seu nascimento. O Maria, porque todas as filhas eram Maria.
Quando foi fazer a apresentação na casa do Major, já ia sem a batina. Falou com o pai da moça para casar-se com ela. Ele disse que Quintino já estava prometida em casamento a um rapaz de fora. Que voltasse com um mês.
O Frade, reitor do Seminário, foi intervir em nome do vovô.
O certo é que, após o mês exigido, o vovô chegou lá bem cedo. E recebeu a permissão de noivar e casar com Maria Quintino, minha querida avó que nunca conheci. No entanto, desde criança, era a avó dos meus sonhos, pelas estórias dela que a minha mãe contava. Dizia que era encantadora. Os lindos cabelos vinham-lhe até a dobra dos joelhos. A pele, de uma delicadeza e alvura sem par! Uns olhos cheios de vida e um sorriso maravilhoso.
Acredito que o meu bisavô tenha feito uma troca. Como naquele tempo era comum os noivos só se conhecerem no dia do casamento, ele deve ter sido estimulado pelo Reitor do seminário a negociar a mudança da noiva. O vovô já era músico conceituado e gozava de grande admiração na cidade. Ao deixar o seminário foi contratado pelos frades para ser professor de música e formar a primeira orquestra do Canindé. Lá nasceram seus cinco filhos: Maria Pia, François, Maria Amélia, Rubens e Maristela, minha mãe, nascida na ante-véspera do dia de São Francisco,
O meu bisavô, Major João Guerra, era um tipo peculiar. Um dia, num encontro de fazendeiros, encontrou um amigo que disse desejar que um dos seus filhos casasse com uma das filhas do meu bisavô, no que ele concordou. Marcaram a data e prepararam a festa. Os noivos só se encontravam na Igreja e não tinha sido feita nenhuma especificação. Meu bisavô resolveu dar em casamento ao filho do amigo, uma filha que, apesar de muito bonita, tinha um problema numa perna, que era mais curta do que a outra, tornando o seu andar claudicante. Minha mãe dizia que este fato parece não ter causado nenhum problema. Foram muito felizes e tiveram 17 filhos!
Por isso, creio que ele não tenha tido dificuldade em trocar as noivas, para o vovô casar com a vovó.
Falando no avô, minha mãe dizia que ele era muito bonito e seus olhos “pareciam duas pedras de anil”. Era político apaixonado e um leitor inveterado. Nas suas viagens, visitando as fazendas, levava um animal carregado de livros e jornais... Qualquer semelhança...
Outra curiosidade do bisavô, que minha mãe contava, era, no mínimo, insólita. Gostava de acompanhar o gado ao açude, para beber água e banhar-se, pela manhã e à tarde. Após o rebanho sair, as margens do açude ficavam cheias de marcas dos cascos dos animais. E o bisavô, na maior calma, ia alisar com a mão as margens esburacadas. Só saía de lá, quando recompunha tudo, não deixando nenhum vestígio. Pela manhã e à tarde, era sempre a mesma coisa... dias, meses, anos. Ele era viúvo e não casara novamente.
De Canindé o vovô saiu para outras cidades, criar novas orquestras. Naquele tempo, as orquestras eram de grande importância, por se constituírem a grande diversão das pessoas na praça, em retretas em volta do coreto.
Em certa ocasião, o vovô foi contratado para criar uma banda de música numa cidade, cujo nome não sei. Após instalar-se, começou o seu trabalho. No dia do aniversário da cidade haveria uma “alvorada festiva”, na qual a banda se apresentaria. Após o ensaio, foram tomar um banho de açude. Os músicos dormiram em sua casa, para saírem de madrugadinha, sem alvoroço. Após o jantar, todos foram dormir. Mais tarde bateram na porta. Minha mãe, então com sete anos, disse que o Maestro Rufino estava dormindo.
Ao alvorecer, saíram silenciosamente para o coreto. E começaram a “alvorada festiva”, executando os mais lindos e alegres dobrados. Quando estavam bem entusiasmados, a polícia chegou e prendeu o vovô e os músicos. O prefeito, dono da festa, morrera à noite. Aquela festividade fora considerada um acinte, uma afronta. Não aceitavam os argumentos do vovô, de que não houvera tomado conhecimento. Finalmente, vovô Rufino assumiu a responsabilidade e mandou soltar os músicos. Após dias na prisão, minha mãe fez uma promessa com São Francisco e Santa Clara. O certo é que o vovô foi solto, mas sob a ordem de abandonar imediatamente a cidade. Nem os móveis levaram.
Creio que foi neste tempo que foi criar bandas de música no Pará e, posteriormente, Manaus. Minha mãe lembrava da viagem de navio e dos grandes peixes camurupins que seguiam o barco. Também avistou crianças índias que ficavam na margem do rio, pedindo as coisas. Como só tinha nas mãos o seu chapéu, jogou para elas... Depois de algum tempo, após formar as orquestras, foi convidado a permanecer por lá. Porém a vovó teve impaludismo (acho que é febre amarela) e retornou para o Ceará. O vovô não agüentou a saudade e veio embora.
Desta feita, foi convidado para ir para Pedra Branca, no interior do Ceará. Uma cidade bonita e onde o vovô fundou orquestra e trabalhava tocando na Igreja e na Prefeitura. Conheci, em 1968, o órgão no qual ele tocava. Tinha uma placa dizendo que naquele órgão tocara o Maestro Salviano. Minha mãe dizia que gostaria de comprá-lo para mim, que tinha parado meus estudos de piano por não ter um. E ela queria que eu tocasse órgão, como o vovô.
Acredito que nessa cidade foi onde meus avós mais demoraram.
O vovô Rufino não tinha o menor tino administrativo. Quem cuidava das fazendas era minha avó Quintino. Ele dedicava-se mesmo era à música e às suas composições. Sempre estava criando inovações para a missa e também novos dobrados, que faziam a alegria das pessoas nas retretas. Ficava assoviando uma melodia e, quando estava ao seu gosto, botava na partitura e escrevia a letra. Também era aficionado na carpintaria, tendo, inclusive, confeccionado vários confessionários entalhados para igrejas de Fortaleza. Temos um descendente do vovô Rufino, seu bisneto Antônio Augusto Leão Chagas, filho da Edna e do Pedrito, que também é artista em madeira. Seus trabalhos entalhados encantam todos, que visitam a Serrinha do Alambari, no município de Resende/RJ.

Trabalho feito pelo bisneto do Maestro Salviano, Antônio Augusto Leão Chagas, na Serrinha, em Resende/RJ.

Ao regressar de uma dessas viagens nas fazendas, a vovó encontrou uma novidade. O vovô dera a mão da sua filha mais velha, Maria Pia, em casamento a um rapaz de quem a vovó não gostava, por ser muito brincalhão, apesar de fazendeiro rico. Não pode desfazer a palavra do vovô. A minha tia casou e, pouco mais de um ano depois, morreu de parto do primeiro filho. Esta filha era o encanto da família, por ser muito alegre, bonita e inteligente, tendo se formado no Colégio da Imaculada Conceição, em Fortaleza. Tocava harpa e violino e era dotada de uma voz maviosa. A vovó ficou muito abalada com a perda da filha, pela qual usou luto pelo resto da pouca vida que lhe sobrou. Acometida de um câncer, às vésperas da cirurgia em Quixeramobim, faleceu tragicamente. Cometeu suicídio por pensar que a doença era contagiosa.
A minha mãe e a tia Maria Amélia foram para Canindé, depois de reiterados pedidos da tia Narazeth, irmã da vovó.
O vovô, a convite do Bispo do Crato, Dom Quintino, foi criar uma banda de música na região do Cariri. Após alguns anos, foi convidado para fundar outras bandas de música em Pernambuco. Na viagem, na Chapada do Araripe, foi atacado por “salteadores”, tendo perdido os instrumentos, os animais e todo o dinheiro da venda das fazendas. Por sorte escapou com vida, apenas com a roupa do corpo.
Mesmo assim foi para Pernambuco e, depois, Piauí, fundando bandas de música nesses dois estados do Nordeste. Ao retornar, atendendo a um convite do Padre de Acaraú, foi criar bandas de música naquela cidade do litoral cearense. Lá conheceu a Albertina Albano, com a qual se casou e teve seis filhos (Marcílio, Maristela, Manuel, Teresinha, Maria Inês e Maria das Graças). Também trabalhava na Prefeitura, responsável pela animação da cidade, com as retretas, e dava aulas de música. Os seus filhos deste segundo casamento eram quase da idade dos da minha mãe, com poucos meses de diferença.
De vez em quando vinha a Fortaleza, ver as filhas e os netos. Mas passou a viver com dificuldades financeiras, contando com a ajuda dos filhos do primeiro casamento. Quando o meu pai recebia seus vencimentos, retirava uma parte que era enviada para o vovô Rufino, em Acaraú, e para a tia Nazareth, em Canindé. A minha mãe, desde que saíra de lá, não esquecia que, nem sempre o pão de cada dia era fácil. Antes de casar, enviava uma mensalidade, que tirava das suas costuras. Após o casamento, o meu pai tomou para si este compromisso. Eu acho até que era grato, pela tia Nazareth ter tirado a bela do lindo sorriso das mãos do Leonsin...
Quando os filhos do vovô chegavam a uma idade que precisavam de estudos, que não tinham em Acaraú, vinham para a nossa casa.
Um tempo o vovô veio ver as filhas e, como estávamos morando em Pajuçara, demorou-se mais em nossa casa. São dessa época as melhores lembranças do vovô Rufino. Quando começávamos a cantar, ele ficava ouvindo, ouvindo e regendo com as mãos. A uma desafinada básica, nos orientava: “O som está alto!” Ou “mais baixo”. E solfejava conosco os acordes. Ensinava à Dilcinha a tocar acordeom. Passava para ela algumas valsas, como o Danúbio Azul. E sempre regendo, com suas mãos firmes... Bem que poderíamos ter aproveitado mais...
Mas o que nos encantava mais no vovô eram as suas conversas. E o seu jeito gostoso de demonstrar o seu amor para conosco. Era deslumbrado com as suas netas. Edna, só para provocar, dizia assim: “Vovô, eu acho que o senhor está assim (e fazia o gesto de intrigado), comigo...” E ele triste, logo respondia: “Oh Ednazinha! Quem é louco por você como eu!...” e era mesmo! Como a Edna e Dilcinha estavam de férias do colégio interno, a casa era uma festa! Principalmente neste tempo em que o vovô veio ficar uma temporada conosco. Como ele dissesse que, após o falecimento da vovó Quintino, tivera 25 noivas, Edna questionava: “Mas vovô, como é que o senhor dava conta de tantas noivas?” Ele então explicava: “Ednazinha, noivar mesmo, eu não noivava. Mas eu sabia que era só eu querer, que elas queriam logo. Eu via pelo olhar que elas botavam para mim!” Edna dava-lhe trela e a conversa ia longe, sempre bem humorada, constituindo-se a alegria da casa.
Aos sábados, bem cedo, o vovô se arrumava todo. Vestia seu terno: paletó, colete e gravata.
- “Para onde o senhor vai, vovô?”

- “Hoje é dia de visitar os encarcerados.”
E ia passar o dia na prisão, visitando os presos! No outro sábado, após o aprontamento:
- “Hoje é dia de visitar os alienados”.
Seguia então para o asilo, passar o dia conversando com “os alienados”. Era mesmo um artista!
O vovô Rufino foi o precursor do vale transporte para os idosos. Achava que não mais precisava pagar transporte, já que trabalhara a vida toda. Era a custo que aceitava o dinheiro do ônibus. A minha mãe sempre lhe dava uma quantia semanal, que acredito, ele usava para levar agrados para os visitados. No entanto, quando ela ia dar o do transporte, não via a menor necessidade...
- “Pra quê pagar transporte?”
Tempos depois, o vovô ficou doente e a família resolveu trazê-lo para morar em Fortaleza. Ficou longe da sua música. Certa ocasião, foi convidado para se apresentar na TV Ceará, no programa do Augusto Borges, “Noite Cearense”. Foi um sucesso total! Executou ao piano músicas clássicas e algumas de sua autoria. Emocionou a todos, inclusive ao Governador de Estado da época, Parsifal Barroso, que pediu uma reapresentação. Nela, solicitava que o vovô repetisse uma canção de sua autoria, cujo título era “Cicatrizes”, da qual lembro pequena estrofe.
“Cicatrizes, são as marcas tão profundas
Que de paixões tão fecundas
Costumam sempre surgir...
Cicatrizes, no coração são abrolhos
Que transparecem nos olhos
Numa lágrima a cair...”

Tendo em vista o muito que ele fizera pela cultura musical do Estado, o Governador decidiu agraciá-lo com uma pensão vitalícia. Quando da liberação da primeira parcela ele não estava mais conosco, passando o benefício a ser recebido pela viúva, até o final dos seus dias. O recorte de jornal testemunha este fato.
Quando a Edna e o Pedrito vieram passar férias aqui em Fortaleza (janeiro de 1963), com o Pedrinho ainda bebê (10 meses), o vovô foi passar uns dias em Pajuçara, rever a neta e o Pedrito e conhecer o bisneto. Poucos dias depois, faleceu. Em fotos foi registrado esse encontro, inclusive do bisneto que herdaria o dom musical do Maestro Salviano: Pedro Augusto Leão Chagas. Muitos anos depois, nasceriam os trinetos Felipe e Matheus, filhos do Edgarzinho e Cynthia, que são, igualmente, virtuoses na música.



Sentados: Vovô Rufino, no seu tradicional terno (mas sem o colete), meu pai com o Pedrinho no colo, olhando para mim, e minha mãe.
Em pé: Padre João (sobrinho e afilhado do vovô), Edmilson, Ednir, eu, olhando para o Pedrinho, Edna e Pedrito.

Meus Pais

“Histórias que escrevo para que um dia, alguém se debruce sobre elas e refaça a nossa trajetória. Quem sabe, encontrando e revirando suas raízes termine por apoderar-se de um grande tesouro. Um tesouro nosso.
Não o da mina de ouro do Ipu, mas aquele ao qual se referia, “que o tempo não poderia destruir”. O senhor, meu pai, legou-nos um patrimônio maior. O patrimônio da honradez e integridade de um nome limpo. E a felicidade de constatar que um homem e uma mulher, na simplicidade de suas vidas, com amor criaram oito filhos, homens e mulheres dignos, honestos e trabalhadores. E dessa prole nasceram seus netos, nos quais se percebem suas fortes marcas. E desses, já estão os bisnetos, construindo um futuro promissor. Família grande, que causava admiração à minha mãe, já na sua idade avançada. ‘E pensar que fomos nós, eu e o Edgard, que demos origem a tanta gente! Tanta gente bonita...’ ”
O meu pai, Edgard Augusto Teixeira, era filho de Antônio Augusto Teixeira e Josefa Augusta Teixeira. Por serem primos e terem o mesmo sobrenome, Teixeira, o meu avô Antônio colocou o Augusto como sobrenome da vovó e dos filhos. Assim, evitaria a repetição Teixeira e Teixeira. Aliás, os meus bisavós tinham também o mesmo nome. O Cel. José Bernardo Teixeira, casado com Ritta JosephinaTeixeira, eram os pais do vovô Antônio. Os pais da minha avó Josefa eram o Cel. José Bernardo Teixeira Sobrinho e Francisca Teixeira.
O vovô Antônio formou-se na Universidade de Coimbra, em Portugal. Também é deste país a origem dos nossos antepassados – Teixeira. No entanto, o vovô Antônio gostava mesmo era de política e de fazer estudos e leituras dos clássicos. A vovó Zefinha estudou no Colégio das Irmãs, como era chamado o Colégio da Imaculada Conceição. Era muito culta, falava francês fluentemente. Na sua velhice, já com problemas de arteriosclerose, ficava muito tempo declamando Camões, sobretudo os Lusíadas. Outras vezes a ouvíamos conversando sozinha, em francês.
Tiveram doze filhos, cinco homens e sete mulheres. Os filhos, à exceção da Tia Alice, eram os mais velhos. As filhas nasceram depois.
O vovô Antônio faleceu aos 45 anos, deixando seis filhas menores. A mais nova, tia Margarida, com cinco anos de idade.
O meu pai, então com dezoito anos, sendo o mais novo dos filhos ficou, juntamente com a vovó Zefinha, na incumbência de terminar de criar e educar as irmãs. Os outros filhos já estavam casados, três deles morando no Rio de Janeiro.
Embora alimentasse o sonho de ser engenheiro, teve que abandonar os estudos para assumir um emprego na mesma Repartição onde o meu avô trabalhava: Departamento Nacional de Portos, Rios e Canais. Porém, no tempo que lhe sobrava, gostava muito de estudar sozinho. Dedicava-se, sobretudo, ao estudo da matemática, sua paixão. Também gostava de inglês, português, geografia e história.
Aos dezesseis anos, faleceu a minha tia Alzira, a quem o meu pai amava muito. Devido a uma espinha no nariz, teve septicemia. Como não havia antibióticos, não conseguiu sobreviver. Mesmo na sua idade avançada, ao referir-se ao seu falecimento e todos os esforços que envidara para que ela superasse o problema, ficava com os olhos cheios d’água.
Assim, quase tão jovem quanto suas irmãs mais velhas – Maria Augusta e Rita – viu-se diante de uma grande responsabilidade. Segundo elas, criou-as com “mão de ferro”, exigindo um comportamento e seriedade excessivos.
Da mesma forma, imprimiu a si mesmo essas atitudes, não se permitindo diversões e mesmo namoros. Como não poderia casar para cuidar das irmãs e da mãe, também não ia se envolver com as filhas alheias.
Onze anos depois, as tias Maria Augusta e Rita concluíram o curso normal, com distinção e louvor, na Escola Normal. Em virtude disso, começaram logo a lecionar.
Por serem pessoas sérias, conversaram com o meu pai, dizendo-lhe que, como já estavam ganhando dinheiro, ajudariam na manutenção da família. Assim, já era tempo dele procurar uma boa moça para casar. Agora poderia constituir a sua própria família.
A minha mãe, Maristela Guerra Marreiro, era filha de Rufino Salviano Marreiro – Maestro Salviano – e Maria Quintino Guerra Marreiro. Ficou órfã aos doze anos. Minha avó Quintino faleceu de morte trágica. A tia Maria Pia, sua filha mais velha morrera de parto do primeiro filho, motivo pelo qual a minha avó, de tristeza, adoeceu, vindo a falecer prematuramente.
A irmã da vovó, tia Nazareth, era viúva de um juiz, Dr. Idelbrando. Por não ter filhos, vivia com a irmã caçula, Tia Teresita. Esta não casara, pois sua grande paixão, um rapaz da família Magalhães, era inimigo político do meu bisavô, João Guerra, que não concordou com o casamento. Ela não quis mais ninguém, preferiu ficar solteira.
A tia Nazareth tinha uma grande e bonita casa, onde acolhia as sobrinhas órfãs. Entretanto, viviam com pouco dinheiro. Embora o vovô Rufino não quisesse separar-se dos filhos, terminou por ceder aos constantes pedidos feitos pela Tia Nazareth, para criar as filhas da irmã falecida. Assim, tia Maria Amélia e minha mãe foram morar em Canindé, na casa das tias, onde já se encontravam quatro outras primas, igualmente órfãs.
Foi uma mudança radical. A tia, apesar da generosidade, era muito austera. As moças viviam sem nenhuma liberdade, não podiam sequer se olhar no espelho. As saídas eram para o Colégio Santa Clara e à Igreja. Para minha mãe, uma adolescente, deve ter sido muito difícil conviver com essa rigidez, sobretudo, tendo-se em vista o seu temperamento extrovertido.
Mas, apesar do pequeno trajeto a que tinha direito, não deixou de criar problemas.A sua beleza e simpatia atraíam as pessoas, mesmo à distância. Começaram a surgir pretendentes, que faziam serenatas. A tia ficava muito aborrecida. Para completar, um belo dia, ao voltar da missa deparou-se com uma foto sua no jornal local, e a manchete: “Salve a linda Maristela, Miss Canindé”. Foi uma grande aflição, por causa da repercussão que teria este fato junto às tias. Nem sabia da existência de tal foto, provavelmente tirada, quando foi servir de modelo para a imagem de Santa Isabel, feita por um artista italiano e que ainda hoje ornamenta o altar principal da Basílica de São Francisco, em Canindé.
Há algum tempo, o Roberto viajando a trabalho, passou em Canindé e entrou na Basílica. Enquanto fazia suas orações, foi atraído pela semelhança da imagem da santa comigo. Ao contar para a minha mãe, soube que ela fora modelo para a sua execução.
Prevendo a confusão do incidente do jornal, minha mãe, ao chegar em casa, chamou a tia Maria Amélia para fazerem uma viagem à fazenda da família, em Baturité. Iam a pé! O importante era não estar em Canindé, quando a “bomba” estourasse. Com a aprovação das tias, puseram-se logo a caminho, para voltar só “quando a poeira tivesse baixado”. Embora esses concursos fossem feitos sem o conhecimento e aprovação da pessoa, as tias iam dizer que ela andava se exibindo, a ponto de provocar essa vergonha à família.
Como nessa viagem se envenenou com estricnina, após comer umas espigas de milho, que tinham sido preparadas para matar ratos, a preocupação com a sua sobrevivência foi maior do que a desonra familiar.
Porém, algum tempo depois surgiu outro problema. Em novas fotos no jornal, lhe atribuíam o título de Miss Simpatia e Miss Sorriso... Minha mãe salvou-se dessa, milagrosamente! Os meus tios, François e Rubens, chegaram a Canindé com autorização do vovô Rufino para levar as irmãs com eles, a fim de morarem em Fortaleza. Assim, a contragosto das tias, mudaram-se. Porém em paz, pois a minha mãe tinha por norma “nunca deixar uma porta fechada”... E ainda dizem que milagres não acontecem.
Miss Simpatia. Manteve este título pela vida inteira.

Acima, quando adolescente, de luto pelo falecimento da sua mãe, vovó Quintino.

A minha mãe contava: em um período em Canindé, quando passavam dificuldades financeiras, chegou uma grande encomenda enviada pelo vovô. Ao abrir, encontraram os mais belos vestidos, sapatos e meias de seda. Tudo muito lindo, mas estava mesmo faltando o alimento. Ela foi à Igreja e passou algum tempo pedindo a Deus e a São Francisco um jeito de transformar aqueles presentes em dinheiro, para o pão de cada dia. Ao retornar, encontrou alguém com uma carga de gêneros que o Diretor do Convento tinha mandado, com tudo o que era necessário, até carne seca e café! Minha mãe atribuía a um milagre de São Francisco. O meu irmão Edilson, que tinha uma explicação para tudo, deu outra versão. Envolvida na oração, terminou fazendo o pedido tão alto que o Frei Nicasso resolveu dar uma ajudinha a São Francisco! Pode um negócio desse?
Em Fortaleza, com os irmãos, viviam felizes, pois se amavam muito. Cerca de dois anos depois, a Tia Maria Amélia ficou noiva do Tio Sales. O tio François ia fazer um curso para tenente, no Rio de Janeiro.
A minha mãe tinha um compromisso de noivado com o Leonsin, rapaz de posses, em Canindé. Neste mesmo tempo, chegou uma carta da Tia Nazareth, dizendo que tivera conhecimento de fatos que desabonavam a conduta do Leonsin. Como era mais velho do que ela, no passado tivera fama de ser namorador. Então pensou: “onde foi casa, sempre é tapera”. Enviou carta desfazendo o compromisso de casamento. Do Leonsin restou apenas uma imagem de Santa Terezinha (foto a seguir), em bronze, de origem francesa, que ainda hoje guardo em meu Santuário.
A imagem de Santa Teresinha está comigo.

Tia Nazareth e o esposo Dr. Ildebrando. A carta dela mudou o destino da minha mãe. Esqueceu o Leonsin e apaixonou-se pelo Edgard.

Com o casamento da Tia Maria Amélia e a viagem do Tio François para o Rio de Janeiro, minha mãe não queria ficar só com o Tio Rubens. Achava que atrapalharia a vida dele. Foi ao Colégio das Irmãs (Imaculada Conceição), no intuito de ser freira. Ao conversar com o padre, esse lhe falou que ela não tinha jeito nenhum para freira. Era preciso vocação. “Serve mais a Deus uma boa esposa e mãe de família do que uma freira sem vocação”, (sábias e proféticas palavras). Aconselhou-a a fazer uma novena a São José, pedindo a graça de um bom esposo. Ela retrucou: “Padre, não é para Santo Antônio?” Ele respondeu que Santo Antônio dá qualquer um. São José escolhe. Assim, começaram as novenas, juntamente com duas amigas, Zizi e Dorinha, tias da nossa mais que amiga, quase irmã, Ivonisete.
As duas sempre falavam com a minha mãe sobre um “Príncipe Encantado”, irmão das suas professoras. A Stelinha disse que ia desencantar esse príncipe. Porém elas informaram logo que o que ele tinha de bonito tinha de antipático. Então minha mãe falou que podiam ficar com ele, pois não gostava de gente antipática. Certa vez, chamaram-na para ir até à Praia de Iracema. Lá, ficaram olhando a ponte e suspirando pelo tal príncipe encantado que trabalhava ali...
Um dia, vindo da novena a São José, passaram em frente à casa das professoras. Resolveram fazer-lhes uma visita. Quando estavam numa animada conversa, eis que chega ele, “O Príncipe”. Cumprimentou-as e, logo depois voltou à sala, perguntando se tinham servido alguma coisa às moças. Estava fisgado!... Como disseram que não, entrou e, em seguida voltou com uma bandeja de suco de maracujá. Com este suco pegou a minha mãe... isso ficou na história... e se repetiu comigo e com minhas irmãs, para pegar os seus respectivos “príncipes”... Eu peguei o Roberto com balas de uva...


Foto colhida em Fortaleza. Da esquerda para a direita: tio François, tia Maria Amélia, tio Rubens, uma amiga, Zizi, minha mãe, Florzinha e Dorinha. A Dorinha era apaixonada pelo meu pai. Deu a dica e minha mãe desencantou o “Príncipe Encantado”. A Florzinha confeitou o bolo de casamento da minha mãe.

No dia seguinte, as duas amigas não puderam ir à novena. Minha mãe foi sozinha. Ao regressar, embora não fizesse parte do trajeto, deu uma volta a fim de passar em frente à casa do “Príncipe”. Com o passo bem lento... O Gerardo, filho da Tia Alice, era criança. Ao vê-la, gritou: “Vovó, vovó, lá vem aquela moça que o tio Edgard ficou doido por ela!” Como o meu pai não tinha experiência com namoro, as irmãs resolveram dar uma ajuda. A tia Rita, que era muito simpática, saiu depressa à porta. A espertinha, de propósito, estava fazendo um agrado em uma das crianças. Tia Rita convidou-a a entrar. Minha mãe disse que não podia, pois a tarde ia caindo e estava só. A alcoviteira da minha tia prometeu que a levaria a casa. Após uma visita rápida, foram, as tias e o meu pai, acompanhá-la. Era o pretexto para saber onde morava.
Desde então, “um certo príncipe” era visto na Rua João Cordeiro. Passava pela calçada do lado oposto à casa da minha mãe, “quase quebrando o pescoço”, a ver se avistava a dona daquele sorriso... Mas outra preocupação o atormentava. Uma moça tão bonita já devia ter pretendente! Depois de seguidas rondas encontrou-a na janela. Falou-lhe do seu desejo de namorá-la. Ela respondeu que só depois que “tratasse” com seus irmãos.
O Príncipe

A Princesa

Meus tios iam chegando. Minha mãe falou com eles e os três – meu pai e os irmãos dela foram conversar sobre “suas intenções”. No final, o tio François pediu-lhe três fontes de referência. Depois daria a resposta. A partir desse dia, “o príncipe” passava lá diariamente. Ela o esperava à janela e discretamente acenava com a mão... Não sei se usava o código de então: passar a mão na cabeça, para dizer: te quero bem! Botar a mão no coração, para dizer: eu te amo!
A expectativa era grande. Por fim, as cartas chegaram. Meu pai era um homem de conduta irrepreensível! Minha mãe contava essa estória e dizia essas palavras com toda a eloqüência. Tinha orgulho dele.
Assim, o namoro foi aprovado e o casamento marcado. O vestido do casamento foi feito pela própria noiva, e o bolo, pela Florzinha, sua amiga.
E, no dia 16 de junho de 1934, às 17 horas, na Igreja Nossa Senhora do Carmo, Edgard Augusto Teixeira e Maristela Guerra Marreiros, entregaram as suas vidas um ao outro. Viveram juntos durante 47 anos, até o falecimento do meu pai, em 29 de julho de 1981. Minha mãe sonhou tanto com a comemoração das bodas de ouro que, embora não tenha ocorrido, na sua idade mais avançada referia-se a essa linda festa... Certamente, aconteceu em seu coração... Como na sua hora final, em 2 de dezembro de 2000, despediu-se para ir ao encontro dele, quem sabe, tenham festejado juntos os 66 anos de casados...

Após o casamento, a vovó e as minhas tias foram passar um mês no sítio dos Teixeira, no Alagadiço (em frente à atual Igreja de São Gerardo). Como continuariam a morar na mesma casa, queriam deixar o casal de noivos mais à vontade.
À noite, sentado no parapeito da casa onde moravam, o noivo cantava, declarando o seu amor, com a seguinte canção:
Embora meu amor
Não seja assim tão santo,
Porém se tu quiseres
Pode ter algum encanto.

Porque só Madalena,
Teve a benção de Deus,
Só tu poderás ouvir
Os primorosos versos meus.

Mas se me desprezares
Sozinho morrerei
Como morreu Jesus,
Da humanidade o rei.

Irei cumprir a sina
De um pobre desterrado,
Levando na retina
O ente amado.

Nasceste para um rei
E não para um pobre
Porém o meu destino
Não permitiu que eu fosse nobre,

Contudo a natureza
Me deu um coração,
Um cofre onde eu guardo
Esta sincera afeição.

E sendo assim meu anjo,
Pra que maior riqueza
Se mesmo na pobreza
Podemos ser felizes.

Aceita este meu peito
Cansado de amargura
E nele encontrarás
Toda a ventura...

Dá-me teu amor, matai esta paixão
Oh! primorosa flor, vem dar-me inspiração
Eu quero em simples versos, cantar meu ideal,
Fazer-te do Universo, um pedestal...

Quando já estávamos maiores, que minha mãe contava essa estória e cantava a música, o meu pai ficava todo encabulado.
Desse casamento nasceram dez filhos: Edson, Edilson, Edmilson, Edna, Maria Edilce, Maristela (natimorta), Estela Maria, Edméia, Ednir e Maria Elizabeth (natimorta).
No casamento dos meus pais, o meu avô, Maestro Rufino Salviano Marreiros, compôs para minha mãe duas músicas que ela cantava sempre. Numa delas, referia-se à vida da minha mãe. Era assim:
No lar materno,
Onde eu bem feliz vivia
Gozando dos meus pais o santo amor
Sem conhecer da vida os turbilhões } Bis
Nem agruras deste mundo enganador }

Veio a terrível e pesada mão da morte
Roubar-me quem me havia dado o ser,
Eu chorava, adolescente, já sem mãe }Bis
Sem arrimo para os erros combater }

Sozinha chorava entre as trevas,
Procurando quem me desse um lenitivo
Encontrei linda mão misteriosa }Bis
Que levou-me a um lar confortativo. }

Esta mão que eu encontrei foi de um esposo
Carinhoso, anjo de bondade
Que tentou mitigar as minhas dores }Bis
Livrando-me dos laços da orfandade. }

A última estrofe não consigo lembrar.
A outra canção era uma valsa bem alegre. O meu avô compunha sempre assoviando. Ficava buscando a melodia através dos assovios. Quando achava que estava do seu agrado, escrevia a partitura e a letra. Minha mãe gostava muito dessa valsa. Cantávamos juntas, tantas e tantas vezes. Não consigo lembrar-me na íntegra:
Quando um dia tivermos querida,
Nosso lar, nosso ninho de amor.
Isolados de olhares perniciosos
Ilusão deste mundo traidor.

Então nossos dias serão poesias
Que os poetas não sabem cantar
E os nossos encantos, sublimes e santos.
Hão de a Deus, uma prece exaltar.

Como a rola que ao vir a alvorada
Amorosa desperta em seu ninho
Despertemos, também, minha amada
Entre beijos de amor e carinho.

Ao sol, rubro e lindo, saudemos sorrindo
Como as aves saúdam também.
Que a sagrada natura contém

A tardinha esta hora mais bela
Que a saudade escolheu entre o dia
Envolto nas cores mais singelas
Sussurram sutil Ave Maria.

A noitinha esta hora bendita
Que as estrelas espalham fulgores
Sussurremos os nossos amores
A foto do feliz dia do casamento. Minha mãe aguarda ainda a chegada do bouquet, porém não podiam mais esperar, por causa da iluminação.

“Há muito mais coisas
entre o Céu e a Terra
do que pode explicar
a nossa vã filosofia...”
(Shakespeare)


Ednir, Edilce, eu, Estella Maria, minha Mãe, meu Pai, Edson, Edilson e Edmilson.
Um encontro na Pajuçara, em 1963. Falta apenas a Edna que já estava casada e morando no Rio de Janeiro
“E fico contando as estrelas, na ponta dos dedos,
Pra ver quantas brilham e qual se apagou...”
Milton Nascimento

A família começando a se formar. No colo do meu pai o Maurício e no da minha mãe a Ada Raquel. À direita do meu pai: Ednilda, Edneide, Maristela e Eliane. À esquerda da minha mãe: Edgar, Cláudio e Edilson Júnior. Os adultos, da esquerda para a direita: Edson, Neide, Ednir, eu, Mourão, Dilcinha, Estela Maria, Nilda e Edilson.

Os netos, Ednilda, Eliane, Edílson Júnior, Cláudio, Edgar e Maristela, brincando com alguns amigos...




Parte da Árvore na comemoração das nossas Bodas de Prata,
no nosso apartamento, em Fortaleza.


Quem Casa Quer Casa

Fico pensando como eram esses casamentos de antigamente. Não havia a oportunidade de se conhecer melhor, de saber dos gostos e temperamento um do outro. Duas pessoas se olhavam, gostavam e, baseados em julgamento de terceiros sobre sua conduta, davam o passo mais sério de suas vidas. Uma jovem romântica, sonhadora como a minha mãe, casou com um homem de bem, mas, realmente, não se conheciam.
Ela desejava ter sua casa, seu próprio lar. No entanto, apesar da ajuda das irmãs, meu pai não ganhava o suficiente para alugar e manter duas casas. Como não era permitido, “pela moral e bons costumes”, namoro demorado, aceitou que casaria para morar junto com a família do meu pai, até que tivessem condições de ter a sua casa.
Anos mais tarde, na Pajuçara, era comum as pessoas se aconselharem com a minha mãe, sobre seus casamentos. Nem sempre eram visitas para pedir “a caixa dos noivos”. Conversavam com uma pessoa de grande vivência, pedindo orientação. Naquele tempo, usava-se isso. O conselho dos mais velhos era importante...
Minha mãe perguntava sempre pela casa. Se o jovem casal ia morar com a família, dizia para falar com os pais, procurar fazer no terreno, nem que fosse uma casinha pequena, até um barraco, que depois fossem melhorando... E vinha com os seus famosos ditados: “quem casa quer casa”. E acrescentava que o período de adaptação de um ao outro, por mais que se amassem, era importante. Viver junto é diferente de viver separado. Para se conhecerem, “é preciso comerem um saco de sal juntos”. Quando mais velha, dizia que o conhecimento viria não após um saco, mas uma saca... e não é que tinha razão!
Mas a dificuldade de adaptação da minha mãe começou cedo. Na casa dos irmãos, a tia Maria Amélia cuidava da cozinha. Minha mãe arrumava a casa e costurava para as pessoas, a fim de ajudar no orçamento familiar.
Nos primeiros dias de casamento, o meu pai teve uma licença e, certamente, ajudava. Ao retornar ao trabalho, deixou em casa um bom peso de patinho. A minha mãe botou a carne e os temperos na panela e encheu d’água. Quando ele chegou para almoçar, o que ela via era um pedaço de carne boiando, numa porção de caldo! Botou a mesa e, ao almoçarem, perguntava: “você gosta de caldo?” Ele, muito sem jeito, dizia que sim... No dia seguinte, foi pedir ajuda à Tia Maria Amélia.
Mas aprendeu mesmo a cozinhar foi com a vovó Zefinha, sua sogra, tornando-se cozinheira “de mão cheia”! Como a vovó.
O interessante é como o meu pai ria, muitos anos depois, quando a minha mãe contava essa história. Dizia que a carne tinha ficado horrível e ele tendo que fingir que estava boa. E quanto ao caldo que teve que beber...
Quando a vovó Zefinha e as tias chegaram, foram outras as adaptações necessárias. Afinal, a casa era delas. Minha mãe, apenas a mulher do meu pai. Não deve ter sido fácil para nenhuma das partes envolvidas. Tinham que dividir a sua atenção, seus cuidados, seu amor.
Não obstante todas as dificuldades, minha mãe foi uma mulher vitoriosa. Conseguiu viver de uma forma harmoniosa, sem atritos, entre pessoas de temperamento muito forte.
Após o casamento das minhas tias, os filhos delas eram muito apegados à minha mãe. Nos seus aniversários, na doença e no sepultamento, eram os mais presentes, sempre se referindo aos carinhos que minha mãe lhes dedicava. Há poucos dias, no aniversário da Tia Margarida, o seu nome era falado pelos sobrinhos como uma mulher extraordinária, que lhes proporcionara grande parte das alegrias da infância. Os sobrinhos da família Teixeira. Nome que a minha mãe assumiu, honrou e dignificou. E, naquela festa era quase visível o seu sorriso, através dos risos alegres, quando se referiam à Tia Estela deles.
O sorriso de alegria “pela consciência do dever cumprido”. Valeu, mãezinha!

“Geração ponte, eu fui, posso contar”.
Cora Coralina

O Fortim

Alguns anos depois de casados, já com os dois primeiros filhos, Edson e Edilson, os meus pais foram morar em Aracati. Ia fazer os estudos de sondagem para o porto do Fortim. Antes tinham morado em Camocim, realizando estudos para ampliação do antigo porto, construído no tempo do Império.
Não sei quantos anos moraram lá. A minha mãe dizia que a casa era muito boa, e ficava em frente ao mar. Como o meu pai passava muito tempo trabalhando, sentia falta dele. Tinha marés muito fortes, o que lhe causava muito medo. Certa vez, houve uma tempestade magnética. O mar revolto parecia que ia invadir tudo e o céu era cortado por relâmpagos tão intensos, que mais dava a impressão de que estava incendiando. Os trovões faziam a casa estremecer. Minha mãe ficou apavorada. Estava grávida do meu irmão Edmilson. Devia ser no inverno de 1938. Ao nascer, em 29/06/1938, a criança apresentou problemas físicos. Muitos anos mais tarde, uns especialistas franceses que trataram dele disseram que sofrera um derrame, ainda no útero. A minha mãe lembrou desse dia em que se sentira tão mal. Acreditava ter sido a causa do derrame do meu irmão. Desde então, ficou com horror ao marejar das ondas. Sentia nostalgia.
Depois dessa temporada, moraram uns tempos em Soure (hoje Caucaia).
Ao final de cada temporada em outras cidades, voltavam para a casa da Praia de Iracema, onde sempre nasciam os filhos. E a família aumentando...
Logo após o parto, o meu pai retornava à cidade, onde estava trabalhando, voltando para buscar a família, após o período de resguardo da minha mãe. Ela dizia que ficava triste sem ele. Sentia-se só.
Por fim, fixou residência em Fortaleza, para os trabalhos que viabilizaram a construção do Porto do Mucuripe.


II - A Conquista de um Sonho
(1942 a 1945)



“Sonho que se sonha só
É só um sonho que se sonha só.
Mas sonho que se sonha junto, é realidade”

Praia de Iracema

“O mar quando quebra na praia,
É bonito, é bonito...”
Dorival Caymmi


Ao retornar para a Praia de Iracema, onde o meu pai realizaria os estudos para a construção do Porto do Mucuripe, foram morar na casa onde tinham ficado a vovó Zefinha e as minhas tias. Algumas já estavam casadas, restando a Tia Maria Augusta que, segundo ela mesma dizia, de tanto escolher marido terminou ficando solteira, com a vovó, seu trabalho e seus livros. A tia Margarida, a caçula, já trabalhava. A minha mãe preocupou-se em enfeitá-la, para que encontrasse um noivo. Além da pressão do irmão, agora tinha a tia Maria Augusta, que não era brincadeira... Por ser muito magrinha, o que não era do gosto da época, minha mãe fazia-lhe vestidos com “enchimentos”.
O meu pai era um apaixonado pelo mar. Dizia que a Praia de Iracema daquele tempo era linda, fazendo jus a tanta fama. À tardinha, ao voltar do trabalho, ia passear na praia com a minha mãe e os filhos. Ao saírem para tomar banho, era uma graça! O maiô da minha mãe vinha até os joelhos, com saiote por cima, e o meu pai usava um calção que era como uma bermuda. E camiseta! Lembro-me de uma foto deles nesses banhos de mar. E também no aeroporto. Imagine, que era na Barra do Ceará! Eram hidroaviões. Coisas que o tempo levou... e nem faz tanto tempo...

A IIª Guerra Mundial abalava o mundo e, na distante Praia de Iracema, em frente à nossa casa - onde hoje é o “Pirata” - localizavam-se os alojamentos dos americanos(*), no Ceará. Divertiam-se no Estoril, logo em seguida ao América, como se chamava a sua base. As moças que saíam com eles foram apelidadas de Coca-Colas, em alusão a esse refrigerante que veio para cá nesse tempo. Muitos anos depois, quando voltamos para a praia o meu pai não queria que as meninas conversassem com a Zélia e a Quinoza, filhas do Catolé, por elas terem sido Coca-Colas...


Estoril totalmente recuperado e respeitando o projeto original.


* Algumas pessoas perguntaram por que os americanos vieram para Fortaleza. Como o Roberto é estudioso da IIª Guerra Mundial, pedi para que explicasse com mais profundidade. A seguir, a palavra do especialista:
“Durante a IIª Guerra o Brasil passou a ser estratégico no esforço de Guerra dos aliados, por vários motivos. Um deles foi o seguinte:
Quando os americanos entraram na Guerra, após o ataque a Pearl Harbor (7/12/1941), o primeiro combate aos alemães foi tentar expulsá-los do norte da África. Então, todo o transporte aéreo entre a América e a África era via Nordeste. A travessia aérea do Atlântico era feita entre Natal/RN e Dacar, na África. E como os aviões não tinham grande autonomia de vôo, necessitavam de aeroportos de apoio, como Belém e Fortaleza. Houve um acordo entre Roosevelt e Getúlio, no qual o Brasil cedeu bases e os americanos compensaram de diversas formas, entre elas, o financiamento da Siderúrgica de Volta Redonda. Por outro lado, existiam incursões de submarinos alemães no torpedeamento de navios em toda a costa brasileira. Estas bases aéreas, Fortaleza inclusive, dispunham de esquadrilhas de aviões americanos para o combate a essa arma alemã. Balões dirigíveis, chamados popularmente de Zepellin, ou aviões Catalina identificavam estas belonaves e as esquadrilhas eram acionadas. Alguns aviões, baseados em Fortaleza, chegaram a ter sucesso no afundamento de submarinos. As próprias pistas dos aeroportos foram construídas pelos americanos, o que viriam a ser os atuais aeroportos dessas cidades. Assim, o contingente americano de pilotos, mecânicos, engenheiros, médicos e pessoal de apoio, era considerável.
Depois da conquista do Norte da África, os aeroportos brasileiros continuaram a ser importantes. A China, que sofria sob o tacão japonês, foi fortemente apoiada pelos americanos através de uma ponte aérea que abastecia as tropas chinesas de suprimentos e material de guerra. E a rota dos aviões que vinha dos Estados Unidos, passava pelo Nordeste brasileiro para chegar à África. De lá para o oriente Médio e depois chegavam à Índia. Em seguida, atravessavam a perigosa cadeia de montanhas do Himalaia, para o destino final na China. No vôo de retorno, sempre vinham os americanos feridos, nas frentes de guerra, ao longo da rota.
Portanto, durante a Guerra os americanos estiveram, em grande número, na então pacata cidade de Fortaleza, deixando marcas e lembranças, uma delas as das famosas “moças Coca-Colas”, ocasião em que este refrigerante foi introduzido na cidade.”

Foram tempos difíceis, pois, além do terror da guerra a família enfrentava problemas financeiros.
A minha mãe fazia costuras para a sua clientela e o meu pai resolveu plantar ervilhas a fim de vender e complementar o orçamento, reduzido pelo desconto de 10% do seu salário,como imposto compulsório para a guerra e de 12% do salário, para a mesma finalidade. Esse, a exemplo da CPMF, estendeu-se por muitos anos.Além disso, foi cortada uma gratificação de 160 mil réis (160 cruzeiros) que recebia. Segundo ele falava: - “A situação estava muito difícil, os filhos estudando.”

A minha tia Margarida recebeu um convite, para o casamento da filha do seu chefe. Seria uma grande festa! Para comparecer em grande estilo, mandou buscar em Recife uma bolsa, na loja Slopper. Porém, ao chegar a encomenda ficou decepcionada! Apesar de muito bonita, a bolsa era de um couro ordinário, não combinando com o seu fino sapato de camurça. A minha mãe pegou a bolsa, olhou, olhou, e disse que poderia resolver o problema. Era só substituir o couro pela camurça. O meu pai despregou a armação e minha mãe desfez a costura e levou a uma loja de couros. Comprou uma camurça finíssima. A medida era em pés. Na festa, a minha tia chamava a atenção. As amigas perguntavam se tinha sido promovida, para usar uma bolsa tão fina. A tia Margarida contou a estória da bolsa, que a sua cunhada refizera. E foi assim que teve inicio a grande produção dos meus pais. As amigas da minha tia começaram a trazer bolsas para a minha mãe fazer. Umas traziam as armações já usadas, outras queriam carteiras. Depois o meu pai começou a fazer armações de madeira torneadas, com as quais minha mãe fazia outros modelos, inclusive bordados em ponto de cruz (veja foto a seguir).


A Edna tinha esta bolsa e quando soube das minhas “Relembranças” pediu-me para guardá-la. Estão bem representados o capricho, a inventividade e a habilidade dos meus pais. Por isso, a razão de tanto sucesso. Vale observar que esta bolsa foi feita pela minha mãe já bem idosa. Lembro-me do bordado da anterior, que parecia um bordado de Gobelin.
As costuras e as ervilhas foram deixadas de lado. O negócio foi aumentando e o dinheiro também. O meu pai criava muitas novidades em armações, fazendo, inclusive, as pequeninas dobradiças, bem delicadas, em flandres. Neste tempo da Guerra havia o black-out, ou seja, as casas deveriam acender o mínimo de lâmpadas, além de vedar as frestas das portas e janelas com jornal. Isto impediria que aviões ou submarinos inimigos vissem a claridade e bombardeassem a cidade. Era um exagero, mas em guerra tudo é possível. Por precaução, meus pais trabalhavam à noite, em um quartinho lá atrás da casa. Segundo ele, entravam pela madrugada. Ali compartilhavam suas vidas e suas habilidades. Enquanto ela bordava ou costurava o couro, ele fazia as armações e as pregava, montando as bolsas. As clientes chegavam em quantidade, já não se sabia de onde. O meu pai dizia assim: “Ai começou a chover encomendas em nossa casa!” Sempre por elogiarem as bolsas de alguém. Cheguei a ver até três carros em frente da nossa casa! (naqueles tempos, carro era raridade). Por fim, decidiram que aquele dinheiro daria para manter a família mais fartamente do que o seu salário. De comum acordo, viviam às custas das bolsas e o salário ia todo para o banco, com a finalidade de comprarem um sítio. O tempo foi passando e cada vez mais aumentavam as vendas. A minha mãe tinha um tino impressionante para os negócios, associado a uma grande capacidade de trabalho e uma simpatia cativante para atender à clientela. Em pouco tempo já estavam com o dinheiro para comprar o sítio e construir a casa. A tia Maria Augusta, que trabalhava na Alfândega, conhecia o Sr. Luiz Gonzaga, que morava em Pajuçara. Pediu-lhe para ver um terreno, pois o seu irmão queria comprar um sítio. O Sr. Gonzaga disse que tinha um perto da casa dele. O meu pai foi ver o terreno. O filho do Sr. Gonzaga foi apanhá-lo em Parangaba, levando-o a cavalo. Ele viu e gostou. Segundo meu pai contava: - “Comprei o terreno por quatro contos de réis (quatro mil cruzeiros). Então, fui ao Maranguape, passar a escritura no cartório e pagar os impostos”. O terreno tinha uma casa de barro, tipo taipa, até grande. Mas eles estavam com o dinheiro para construir uma casa nova, embora mantivessem a outra para depósito de material. A tia Áurea, esposa do meu tio Rubens, irmão da minha mãe, era proprietária de fazendas em Acopiara. Ofereceu todo o cedro, que vinha de trem, para a construção da casa. O meu pai desenhou a grande tesoura da sala, seguindo o modelo da casa dos seus parentes, em Águas verdes. Orgulhava-se dela, por ser “uma peça inteiriça” de madeira. Falava para nós do tamanho que deveria ter aquela árvore.... As portas e janelas da casa também eram de cedro. Com esta mesma madeira fez a grande mesa da sala, um guarda-roupas e alguns outros móveis. Uma pequena muda foi plantada em nosso sítio, que cresceu muito e eu gostava de sentir o cheiro das suas folhas. O meu pai estava sempre a observá-la, para que crescesse linheiro.
Enquanto a casa da Pajuçara era construída, eu também me desenvolvia no útero da minha mãe. Somos contemporâneas. O trabalho das bolsas ia aumentando e já começava a causar problemas. No fim do ano eram muitos carros parados em frente da casa. Era extremamente incomum naquela época. O meu pai começou a ficar nervoso, pois o que era um trabalho informal estava virando um grande comércio. “E ilegal!” Preocupado, resolveu dar um basta no que poderia ter sido uma grande fonte de renda da família. Ao invés de procurar regularizar a atividade, mudou-se para a Pajuçara. A princípio, levando a minha mãe e os filhos em férias. Como ela tivera que trabalhar muito para as festas do Natal, após ter tido uma criança (no caso, eu), disse-lhe que “aqueles ares lhe fariam bem”. Depois resolveu que ficaria lá, com minha mãe, Edmilson e eu, então com quatro meses de vida. Os outros filhos que estudavam ficaram com a vovó e as tias, indo para casa só nos fins de semana.
Acho que isso para a minha mãe foi muito ruim. Ela se referia às dificuldades que teve que enfrentar naquele lugar tão distante, onde passava os dias sozinha com duas crianças e sem os outros filhos. As pessoas de lá inicialmente a hostilizavam pensando que fosse crente, como o Sr. Gonzaga. Não conseguia comprar sequer uma galinha.
Contudo, acredito que sentia falta do seu trabalho, da sua vida de artista. Nunca esqueceu das suas bolsas. Nos seus últimos dias, no hospital, Ivna foi visitá-la e disse que, como ela também estava fazendo bolsas para vender:

- “Vovó, fique logo boa, para a senhora me ajudar!”

Os olhinhos da minha mãe brilharam! Minha filha contou-lhe como era o seu trabalho. Minha mãe disse que tinha uma porção de idéias... Quando a neta saíu, ficou em silêncio por algum tempo. Em seguida, virou-se para a Estela Maria e para mim, que a acompanhávamos, e perguntou: “Será que eu ainda posso?” Realmente, não podia. Pouco tempo depois, faleceu...




Minha mãe comigo ao colo, nas duas fotos acima, quando fomos morar na Pajuçara.
Na missa de sétimo dia da minha mãe, emocionei-me ao ver uma das suas bolsas entrando na igreja, pelas mãos da Ivna. Era a sua maneira silenciosa de homenagear a avó...
Duas pessoas possuem as bolsas da minha mãe. A Edna e a Ivna. A da Edna é com a armação de madeira, feita pelo meu pai.

“Se soubesse que as coisas duravam tão pouco,
teria perdido mais tempo em dedicar-me a elas”...

A Casa

“De pena e saudade, papai sei que morro...”
Patativa do Assaré

A casa da Pajuçara não foi construída para morada da família. O seu objetivo inicial era o de ser uma casa onde os meus pais pudessem passar as férias com os filhos. Um sitio, no qual as crianças tivessem oportunidade de “se soltar”. Além do mais, meu pai poderia dedicar-se um pouco à plantação, ao trabalho com a terra, de que tanto gostava. E também à criação de alguns animais. Ele gostava muito de apicultura e tinha vários caixotes de abelhas “jandaira”
Com o trabalho das bolsas da minha mãe, para o qual contava com a sua inestimável cooperação, isto se tornou possível bem mais rápido.
A residência da família era a casa da Praia de Iracema, que lhe fora concedida em usufruto pelo Dr. Portugal, em virtude dos inúmeros serviços prestados por ele à Repartição.
Com a decisão de fixar residência em Pajuçara, muitas coisas precisaram ser improvisadas!
A construção da casa fora confiada ao Mestre Mandica, o mesmo que construíra a do Sr. Luiz Gonzaga.
O projeto foi feito pelo meu pai, inspirando-se na casa de uns parentes da Águas verdes.
Muitas vezes fomos a esta casa em Águas verdes, e sentia-me à vontade, sentada nos parapeitos que meu pai reproduzira em Pajuçara. Ao chegarmos, nos deparávamos com a mesma rosácea, em alto relevo, que existia no alto da fachada da nossa Casa.
No meio da sala, havia uma grande tesoura, que era o seu orgulho e admiração. Ouvi, muitas vezes, ele nos chamar a atenção para a grande peça, feita em cedro “inteiriço”, que adornava e dava sustentação ao telhado da sala. Referia-se à imensa árvore que se doara para a sua concretização. Como precursor do movimento ecológico, era capaz de ver num móvel, a sua essência. E assim ter gratidão e respeito por ele. Ao precisar realizar as podas das árvores, fazia apenas o indispensável. Quando trazia as achas de lenha para o fogão, as acomodava nos braços, com cuidado. Parecia carregar uma criança, com os dois braços estendidos.
Toda a madeira da casa era em cedro, vinda das fazendas da tia Áurea (esposa do tio Rubens), em Acopiara.
Segundo o plano inicial, tínhamos uma sala bem grande, o quarto do casal, um quarto para as filhas (o melhor da casa), um quarto para os meninos, a cozinha, uma área atrás e um alpendre, rodeado de parapeitos. Era aí que também ficava o banheiro, dividido em dois, por uma meia parede. No lado menor a sentina e uma lata d’água. No outro lado, o banheiro, com um cabide que fizera de cedro, que hoje está na casa da Ivna. No chão, uma tina para a água do banho e uma pedra, na qual tirávamos o “seroto” dos pés. Na parte do lado da sentina, na parede, tinha uma tábua com um prego grande. Nele, pedaços de jornal cortados bem certinhos no formato retangular. O meu pai os cortava, apoiando no afiador da sua navalha. Creio não precisar dizer a que se destinavam... Alguns anos depois, foram substituídos por papéis acinzentados do mesmo formato, sem contudo serem muito mais macios. Após algum tempo, surgiram rolos brancos e depois cor de rosa, presos a uma peça de porcelana, através de um rolo de madeira. Adivinhou? Esta foi a evolução do papel higiênico que, nos dias atuais, existem até perfumados. Tibis! No chão, tínhamos uma lata de creolina, depois trocada por desinfetante. Na reforma para a primeira comunhão da Ednir, foi mandado fazer estuque verde claro, dos dois lados desse banheiro.

A casa, em 1946, logo após a mudança. Foto colhida pelo tio Sales, que era proprietário do famoso Foto Sales. Percebe-se o frontal igual ao da casa de Águas Verdes. Meu pai de pijama listrado, minha mãe comigo nos braços, aos quatro meses. A Edna junto ao meu pai. Num grupo, Anunciada (minha madrinha), Edson, Dilcinha, Edmilson. A Estella Maria entre o Edmilson e o Edilson. Não sei quem é o empregado ao lado da Edna.

A entrada da casa era composta de um alpendre, cercado de parapeitos, no qual havia três passagens, uma na frente e duas na lateral.
Quando a família mudou-se para lá, foi feita uma adaptação. A grande sala com 7 metros de comprimento por 4 metros de largura, passou a ter as funções de sala de visita, sala de jantar e também de costuras. Logo após a porta de entrada, havia duas cadeiras de madeira, com o assento e o encosto de lona listrada, amarrados com cordões grossos, na parte de trás. Em seguida à máquina de costura, um belo lavatório de ferro, com suporte para uma bacia de ágata e um cabide, no qual se pendurava a toalha. Embaixo, uma jarra também de ágata. Dispunha de um local para se botar o sabonete. Que beleza de lavatório!
No lado direito, a cristaleira, com muitas peças bonitas. Entre elas, a licoreira e copinhos cor de rosa, a terrina, de porcelana inglesa, uma fruteira de cristal e parte de um aparelho de jantar de porcelana inglesa maravilhoso, todo trabalhado em azul colonial.
Na posição do comprimento da sala, a grande mesa feita pelo meu pai, com o cedro de Acopiara. As suas pernas eram torneadas com lima e formão.
Do outro lado, a mesa com o rádio à bateria e o cano de fazer terra.
Ao fundo, um guarda-louças pequeno, um conjunto de sofá de madeira com medalhões de palhinha e duas cadeiras de braço, do mesmo modelo; duas belas cantoneiras, cheias de bibelôs e plantas. Quatro cadeiras de palhinha, uma de canto com a outra, fechavam esse pequeno espaço. Na parede, o quadro lindíssimo do Sagrado Coração de Jesus. Apesar da sua beleza, assustador. Nos diziam que, no dia em que Ele soltasse a bola que tinha em suas mãos, o mundo acabaria. Nem contei as noites nas quais nos levantávamos, pé ante pé, lamparina na mão, para olhar se Ele estava soltando aquela bola. A bola era o globo terrestre! A Estella Maria dizia: “Jesus, não durma não, não solte a bola não, senão a gente morre...” Também na sala, um lindo espelho trabalhado com flores e folhagens.
No quarto dos meus pais, uma cama muito bonita, um guarda-roupas, um grande malotão de dois andares e um santuário com genuflexório e almofada. Ali, minha mãe se ajoelhava para as suas orações noturnas e matinais. O fazia com tanta contrição que, anos depois, o Edilson deu-lhe um prato de parede com os seguintes versos:
“Eu vi minha mãe rezando
Aos pés da Virgem Maria
Era uma Santa escutando
O que a outra santa dizia”.
Certamente lembrava-se da maneira como a sua mãe rezava...
O meu pai dormia de rede, tendo ao lado uma espingarda de espoletas. Embaixo da rede, perto das suas chinelas Franciscanas, uma lanterna de pilhas Eveready. No inverno, ao lado das chinelas, um par de botas de borracha, que vinha até quase os seus joelhos.
No nosso quarto, três camas “Patente”, um guarda-roupa e uma penteadeira. Sobre ela, vidros de perfume, uns cheios e outros de água com anilina amarela. Para enfeitar. Sobre toalhinhas de renda, alguns bibelôs e uma bonita caixa de porcelana com detalhes em azul e dourado. Minha mãe a chamava de pocarina. Pelo nome, eu pensava que era para botar pó. Porém ela usava como porta jóia. Eu nunca aceitava essa finalidade.
Nas portas, cortinas de rechiliê, que desciam até perto do chão.
O piso de toda a casa era de tijolo queimado, na tonalidade avermelhada.
A casa era amarelo ocre com barrados brancos, e as portas e janelas eram verdes.
Anos depois, a cor foi substituída pelo azul colonial, o original dos familiares da Águas verdes. Inicialmente esta cor não foi usada, em virtude dessa ser a marca das portas e cancelas das propriedades dos Tó Diogo, vizinhos do nosso sítio. Com a sua venda, o meu pai adotou a cor da casa da família Teixeira. O mesmo azul do brasão.
“Aos poucos” foi sendo modificada. A construção de um alpendre do outro lado foi feita com o nosso regresso do Porangabussu. O Mestre Mandica também foi o construtor. Já estava bem velho, gordo, mas com um sorriso alegre e suave. Gostava de brincar com as crianças e nos deixava ficar mexendo no barro, com a colher de pedreiro.
A casa passou por uma importante modificação para a primeira comunhão da Ednir. O piso da sala foi mudado para cimento vermelho, queimado com querosene. Este trabalho varou a noite. O meu pai, com a Petromax, andava por cima de tábuas iluminando, para que o mestre executasse os cortes que ele marcara, imitando mosaicos. O da cozinha foi feito de cimento comum, só queimado com querosene, para ficar brilhando. Também mandou assentar tacos nos dormitórios. Após colocado, coube a nós, pequenas, fazer a raspagem da madeira, com umas raspadeiras de ferro. Dizia que, se tivéssemos energia elétrica, aquilo seria num instante, pois existia uma máquina que fazia esse trabalho ligeirinho! Como gostaríamos de ter essa máquina... À noitinha, após tirar o leite e jantarmos ia nos ajudar. A reza do terço era ao som das raspadeiras... “o tempo urge!” , dizia. A Estella Maria reclamava: “Não sei pra que fizeram uns quartos grandes desse jeito...” Eu não entendo por que os meus irmãos não ajudavam em quase nada. Quando chegavam, nos fins de semana, pegavam um pouco e logo inventavam uma saída... “Eu vou ali e volto já...” E esse “volto já”, tome tempo! Quando a gente via, era eles saindo de mansinho, no portão, nas suas bicicletas! Hen, hen! Acho que, quando alguns anos depois, ouvia a vovó Zefinha assustada dizer para a Tia Maria Augusta: “Maria, isso é um comunismo”, deveria se referir a coisas desse tipo! Aquilo era mesmo um comunismo! Se fosse depender deles, chegava o dia da festa e o trabalho não estava acabado. Depois das raspadeiras, vieram as buchas de arame, que também não eram nada fáceis. Arranhavam muito as nossas mãos. Por fim, quando o meu pai comprou um escovão, a Estella Maria inventou de botar a bucha e sair passando o escovão. Ai foi fácil, fácil... Essa Estella Maria...
A princípio, ficamos muito felizes com a novidade do piso novo. Mas depois, dá para pensar para quem ia sobrar... Lavar a casa era bem menos complicado... agora tinha que passar querosene, depois a cera Cachopa, misturada com cera de carnaúba, que o meu pai derretia numa lata para botar junto. “Para conservar o piso”, dizia ele. A sala também precisava ser encerada, com cera Cardeal vermelha. Enfim, era o progresso... E a Estella Maria dizia logo: “Progresso às nossas custas...” Mas bem que ficávamos muito contentes, quando as pessoas chegavam e admiravam o brilho. Tinha o gosto de um afago...

Foto do meu cunhado Alexandre Mendelssohn, com a Ivna nos braços, em frente à casa da Pajuçara. Esta é a única foto que mostra como ficou a fachada, após a reforma. Percebemos a janela com detalhes em azul.

A Baleeira

Meu pai coordenou o levantamento de sondagem e das marés, para os estudos visando a construção do Porto do Mucuripe, em Fortaleza. Como maregrafista, trabalhava na Baleeira, um tipo de embarcação estreita e veloz, apropriada para alto mar, onde eram medidas as marés.
Quando morava em Pajuçara, vinha de trem. Embora fosse o coordenador dos trabalhos, sua ordem era que, às 7h 30m, quando iniciava o expediente, os seus companheiros jogassem a baleeira ao mar e iniciassem a viagem, mesmo que ele não tivesse chegado. Se o trem atrasasse, deixava a roupa na casinha da Ponte dos Ingleses, colocava a caderneta e o lápis numa lata de manteiga, amarrava com um elástico sobre a sua cabeça e ia, a nado, ao encontro do barco. Não queria, principalmente por ser chefe dos trabalhos, causar nenhum atraso, mesmo de poucos minutos...
À época, o diretor do Departamento Nacional de Portos, Rios e Canais, não gostava dele. Primeiro que, embora sendo engenheiro, não sabia trabalhar os dados que o meu pai levantava e, em seguida, elaborava as planilhas. Aliás, parece-me ver, diante de mim, as cadernetas nas quais fazia as planilhas. Escritas a lápis, os números tão bem feitos e perfeitamente alinhados, como se tivesse utilizado uma máquina. Outro motivo desse Diretor não gostar dele é que, por ser muito desonesto, não podia se sentir à vontade. Como, ao voltar do mar, o meu pai acumulava as funções de almoxarife, tudo o que precisassem só podia sair com a sua autorização. E era ele quem guardava a chave do cadeado. Um dia, o tal diretor fez um pedido muito grande e tudo foi separado. Mandou pegar o material. Meu pai foi à sua sala levar a nota, para colher a sua assinatura, visando a sua liberação. O Chefe ficou irritadíssimo, gritando com aquela sua voz fanha. Não quis mais nada... Outro dia, o cadeado do almoxarifado estava arrombado. E o Sr. Edgard Augusto Teixeira fez um relatório, denunciando o roubo, enviando-o para o Ministério, no Rio de Janeiro.
Um dia chegou a vez desse Diretor tirar a forra.
Veio do Rio um alto funcionário, Dr. Portugal, para inspecionar os trabalhos de levantamento do Cais do Porto. Era no mês de agosto e o vento estava fortíssimo, prenunciando uma tempestade. O Diretor mandou o meu pai ir para o mar e ele ponderou que não podia jogar a baleeira no mar à tarde, por causa do vendaval. O tal Diretor ordenou que o fizesse, falando ainda que ele estava era com medo. Após navegar uma pequena distância, a Baleeira, sob ação da tempestade, se desgovernou e vinha em direção aos rochedos. Meu pai mandou os homens saltarem e irem se salvar a nado. Pulou do barco e ficou segurando-o, com a grande força de suas mãos. A maré jogava a embarcação sobre as pedras, ela batia no meu pai, que a firmava, evitando que se despedaçasse no choque. Quando os outros companheiros chegaram, conseguiram arrastá-la com outro barco, uma Traineira. Ao soltar a baleeira, percebeu o sangue que saía dos seus dois joelhos quebrados. Foi para o hospital e depois para a nossa casa, em Pajuçara. Eu era pequena e ficava muito triste vendo o meu pai, um homem tão forte, sendo carregado numa cadeira por dois homens. Depois deste acontecimento, seus joelhos nunca mais foram os mesmos. Ficou tendo crises de reumatismo. Quando o Cais do Porto foi inaugurado, o Dr. Portugal enviou uma carta muito bonita, agradecendo ao meu pai pelos trabalhos que viabilizaram a sua construção. Essa carta, juntamente com outras que recebeu do Ministério dos Transportes, todas muito efusivas em homenagens, eram guardadas com muito carinho, em um caixãozinho de cedro. Muitas vezes as li, segurando cuidadosamente aquele fino papel, já amarelecido. Foi a única lembrança que pedi dele. Esse caixãozinho com seus documentos, e grandes histórias, de um homem simples... infelizmente, sumiu.

Meu pai com os seus companheiros da Baleeira. Foto colhida ao pé da Ponte Metálica


Anos depois, muitos anos, meu pai foi ao Rio de Janeiro, passear com a minha mãe. Ao saber, através do Dr. César Dantas, que substituiu o diretor corrupto, que os meus pais estavam no Rio de Janeiro, o Dr. Portugal convidou-os para jantar, em sua bela residência, na praia do Icaraí, em Niterói. Foram momentos de grande emoção, pela maneira como foram recebidos. Com carinho e admiração.
Após a construção do porto, passou a ser responsável pela fixação das dunas do Estado do Ceará.
Quando lhe perguntava por que se arriscara tanto para salvar a Baleeira, respondia que, além de ser responsável por ela, sentia-a como parte dele mesmo. Ele não sabia, mas a amava...

Este homem é o meu pai... E o admiro muito.


Dr. Portugal e meu pai, na Pajuçara. Ao fundo, a casa de taipa, que fazia parte do terreno. No detalhe da foto, à esquerda, o Edilson, e à direita, o rosto da Edna.


O Defunto na Praça
Quando meus pais moraram um tempo em Soure, hoje Caucaia, conheceram a família do Sr. Raimundo. A Anunciada, ainda menina, foi lá para casa, ajudar à minha mãe. Depois veio a ser minha madrinha, saindo da nossa casa para se casar.
O Sr. Raimundo, tempos depois, ficou doente, tuberculoso. Minha mãe, já tendo retornado à nossa casa da praia, onde nasci, arrumou para que ele se hospitalizasse na Santa Casa de Misericórdia. Um dia, um cunhado dele foi lá em casa dizer que o Sr. Raimundo estava muito mal e queria morrer em casa.
Minha mãe foi falar com o médico, que se negou a autorizar a saída do doente, que estava em estado terminal. Ela não se conformava diante do pranto do velhinho, que desejava tão pouco: somente morrer em casa... Combinou com o cunhado e mandou vesti-lo, com a roupa de sair. Botou-lhe o chapéu na cabeça. Como era hora de visita, segurou de um lado e o cunhado do outro. Pediu ao doente para disfarçar... E passaram pelos corredores da Santa Casa, como se fossem visitas. Dirigiram-se à Praça da Estação. Enquanto esperavam o trem, sentaram o Sr. Raimundo em um dos bancos e ela foi comprar os bilhetes. Ao chegar, quando falou com o velhinho, notou, perplexa, que ele estava morto... Ainda tentou enterrar mais o chapéu em sua cabeça, para disfarçá-lo e sentá-lo no trem, mas o fiscal descobriu que o passageiro já estava morto, e avisou: só na funerária. Ao chegar à funerária, acertou o preço do carro e caixão. Era o dinheiro que tinha na bolsa. Mas precisava do atestado de óbito. Como não podia voltar à Santa Casa, de onde raptara o doente, lembrou-se de pedir ao seu médico particular. O consultório era na praça da Faculdade de Direito (Praça da Bandeira, depois Clóvis Bevilácqua). Felizmente o Dr. Moreira da Rocha atendeu, sem cobrar consulta. Voltou então para a funerária, de posse do atestado de óbito. Mas lá, outro problema. O preço que o rapaz dera, e para o qual ela tinha o dinheiro, era até as 18 horas. E já estava passando, custando mais caro. Minha mãe ficou aflita, ainda mais pensando que o meu pai já estava chegando em casa. O jeito era pedir. Pedia a um que dava, batia noutra porta e lhe negavam. Em uma casa, quando pediu, a pessoa que atendeu chamou outra e disse: “fulana, venha ver, uma mulher tão bonita e bem vestida com essa história de pedir dinheiro para enterrar defunto”.Minha mãe, morrendo de vergonha. Por fim conseguiu o dinheiro, botou o Sr. Raimundo no caixão, que seguiu para a sua tão sonhada morada.
Minha mãe, cansada, ainda teve que andar a pé, da Praça da Estação até à Praia de Iracema,onde morávamos. Ia rezando, pedindo a Deus para dar um jeito de entrar em casa em paz. Ao chegar, pulou o pequeno muro. Por sorte que a janela do seu quarto estava apenas encostada. Pulou a janela e meteu-se embaixo do cortinado da sua cama, cobrindo-se com os lençóis. Só ouvia a conversa do meu pai com a minha avó e minhas tias, querendo saber onde minha mãe andava. Mas, como poderia contar toda essa história? O jeito era ficar quieta. Mais tarde, meu pai, em pânico, entrou no quarto para se vestir a fim de ir procurá-la. Quando acendeu a luz, ela se fez de assustada:
- “Edgard...”
- “Estela! Onde é que você andava?”
- “Eu? Deitada. Estou com uma dor de cabeça!...”
E puxava os lençóis, para que ele não visse o vestido de sair que ainda não tinha podido tirar, com medo de ser percebida... Realmente, como explicar? Anos mais tarde, quando ela contava essa história, ele sorria, misturando um pouco de zanga...
Ainda hoje, quando alguém me pede dinheiro para enterrar alguém, mesmo sentindo bafo de cachaça, eu dou. Lembro da minha mãe...A Ericka, sua neta, diz que com ela é a mesma coisa. Lembra da avó e não consegue negar.


Belo prédio da Estação, onde minha mãe tentou embarcar o falecido Sr. Raimundo, em foto da época e atual.



III - O Porangabussu
(1948 a 1952)



“E lá vai menino, lambendo podre delícia
E lá vai menino, senhor de todo o mundo,
Sem nenhum pecado, sem pavor,
O medo em minha vida, nasceu muito depois...”
Milton Nascimento



O Porangabussu


Premido pelo desejo de juntar os filhos que estavam separados por causa de estudos, meus pais resolveram voltar para a cidade. Alugaram uma casa em Porangabussu. Fomos morar lá em 1948. Tenho uns lampejos de lembranças; no colo da minha mãe, na boléia do caminhão, via lugares estranhos, árvores diferentes. E o sacolejar, dando catabios, nos buracos da estrada enlameada, o que me faz pensar que era no começo do ano. Também deve ter sido, para o início das aulas dos meus irmãos. De repente o mundo ficara grande demais para mim... Talvez nunca tivesse saído da Pajuçara...
Ao chegarmos defronte a um portão marrom, minha mãe me colocou no chão molhado.
Entramos na casa escura e dei meus primeiros passos naquele piso branco e preto (alternando mosaicos brancos e pretos). Eu era bem pequena para entender as coisas. Tenho uma lembrança da Dilcinha puxando água numa bomba. Senti medo daquele estranho objeto num banheiro muito escuro. E chorava, chamando-a de Tatén. Era este o nome dela para mim. Era a irmã de quem recebia cuidados e, naquele novo mundo, a minha fonte de segurança. Também botava café numa mesa alta demais, no qual eu mergulhava um pedaço de pão.
Depois fui emergindo dessa fase e, com o tempo passando, as recordações ficam mais fortes. A casa era bonita, com varanda à qual se tinha acesso após três batentes. Neles caí certo dia, ao avistar a Estella Maria atravessando a linha do trem. Vinha da casa da vovó Zefinha, com o meu pai. Morava lá com ela e os fins de semana passava conosco. Na minha alegria ao vê-la, tropecei e cai com a mamadeira de vidro. Um dos cacos cortou-me perto do olho, deixando uma marca que até hoje existe.
Tínhamos um bonito jardim, com flores vermelhas a que minha mãe chamava colibris. Vi muitas delas, em Resende, na casa da Edna. Ladeando uma passarela de cimento, muitos pés de entrada de Jerusalém, rosa claro e escuro e um grande pé de bugaris, que vivia florido. Aliás, esta planta acompanhou toda a vida da minha mãe. Ao final, no hospital em que ela estava, tinha também pés de bugaris. Apanhava dessas pequenas flores perfumadas, colocava na bolsa e, no quarto, botava nos seus cabelos. Ela superava a dor e sorria feliz...
Em frente da casa, a linha férrea, onde passava o trem. Era a nossa grande alegria! Ao anoitecer, quando ouvíamos o barulho da Maria Fumaça saíamos saltitantes, acenando para as pessoas que iam nas janelas. Logo que passava o último carro, subíamos no trilho e, com os braços imitávamos o movimento de vai e vem da alavanca das rodas da locomotiva. E fazíamos o barulho do trem, como se também fôssemos um.
“Café com pão bolacha não, café com pão bolacha não... “
De vez em quando essa brincadeira terminava em choro, pois eram comuns as quedas nos trilhos, ralando os joelhos nas pedras. E também as queimaduras, provocadas pelas brasas da Maria Fumaça... Mas, no outro dia estávamos lá novamente: Café com pão bolacha não, café com pão bolacha não...
Aos domingos toda a família ia à missa, na Igreja dos Remédios. A mesma aonde, muitos anos mais tarde, Roberto e eu levaríamos a nossa pequena Ivna para batizar, num dia de Cristo Rei.
Eu sentia muito medo, pois precisávamos atravessar a ponte do trem, para diminuir o caminho. Mas as minhas pernas eram muito pequenas e não conseguia transpor os dormentes. E o meu pai já levava a Ednir, a caçula, ao colo. Os meninos me pegavam cada um num braço e me suspendiam. A sensação que tinha era de que ia cair lá embaixo, no rio!
Meu pai sempre nos levava para passeios. Um de que gostávamos muito era ao jardim Zoológico do Sargento Prata. Homem agradável, simpático, abria os portões da sua casa para receber as crianças que iam ver os animais. Tinha macacos, cada um mais sabido do que o outro. A mãe macaca ficava catando piolhos nos filhotinhos... Também tinha umas cobras enormes, parece que eram jibóias.
Um dia o Sargento desistiu de viver, por não poder mais alimentar os animais. Foi muito triste, pois quando chegamos lá ele estava morto, ainda no chão. Mudaram os animaizinhos órfãos para o Parque da Criança. Meu pai passou a nos levar para lá. Hoje o parque chama-se Sargento Prata.
Também nos levava para “atos cívicos”, tais como a parada de sete de setembro e à chegada do Juarez Távora, candidato à Presidência da República. Estávamos lá, com bandeirinhas, perto do Bar Azul.
O inesquecível passeio para conhecer o Zepellin, que causou polêmica com o Roberto sobre a minha idade, foi parte deste roteiro turístico.
A vida no Porangabussu era boa, para crianças como nós. Tínhamos companhia da nossa idade. Foi lá que aprendi a soltar pião e triângulo, brincar de cabra-cega, de bila, de roda, além da companhia tão esperada do trem. Ele era um verdadeiro encantamento para nós. Além do mais, as brasas se transformavam em carvão, no dia seguinte. Com ele podíamos desenhar à vontade, no pátio que havia no oitão da casa.
Outra coisa boa demais eram os doces gelados da bodega do Sr. Zelito, pertinho da nossa casa. Ele tinha uma geladeira! Já pensou um negócio melhor do que esse? Fazia doce gelado. Era só termos um tostão (na verdade um centavo), para corrermos para lá. Ele pegava a forma de gelo, botava sobre o balcão e a fumaça subia... Levantava uma alavanca e soltava aquela maravilha! Queria dar o das pontas, mas era menor. Insistíamos para nos dar os do meio. Afinal, não era todo dia que a gente tinha um tostão... Na verdade, apesar de toda a tecnologia nenhum sorvete do mundo se compara ao doce gelado da bodega do Sr. Zelito!
Em 1972, morava na Av. da Abolição. Estava grávida da Ivna e vi passar um caminhão de gelo meio fosco, soltando aquela fumacinha... Lembrei-me dos doces gelados da minha infância. Cheguei mesmo a desejar... Fiz um suco de limão e botei no congelador, mas não tinha nada a ver com aqueles que tanto me fascinavam. E o pior é que a bodega do Sr. Zelito não existia mais...
Atrás da casa, com o quintal correspondente, moravam uns crentes. Como sabiam que éramos católicos, porque a minha mãe ficava cantando benditos, começaram a implicar conosco. Jogavam uma porção de lixo por cima do nosso muro. Todos os dias, o meu pai se zangava. Para evitar problemas, a minha mãe, à tardinha, antes do meu pai chegar e ir ao quintal cuidar das bananeiras e hortaliças, já nos chamava para ajudá-la a limpar tudo e botar num terreno baldio, ao lado da casa. Morríamos de medo dos crentes! Eram eles e o bicho-papão a nos atormentar, ali no Porangabussu... Esse último, juntamente com o papa-figo, vivia à espreita de crianças que estivessem sozinhas na rua... Ainda bem que nunca pegou nenhuma de nós!
Um dia, a minha mãe nos deu uma notícia que nos deixou muito felizes. A cegonha ia nos trazer mais um irmãozinho. O Edgarzinho! Foi uma grande alegria! Cantávamos, colocando o nome do neném. Edgarzinho, Edgarzinho... Algum tempo depois, outra notícia nos encheu de tristeza. A cegonha tinha trazido uma menina: Maria Elizabeth. Mas, coitada! Como já estava velhinha, caiu... e a nossa irmã virou anjinho! Uma anjinha tão pequena, gordinha e tão linda, toda vestidinha, com um laço azul na roupinha. Estava em cima do santuário. O Edgarzinho viria muitos anos depois. Mas filho da Estella Maria e do Mário.
Eu ficava esperando o tempo passar para o meu pai trazer a Estella Maria. Não era só pelos tijolinhos de leite que a vovó Zefinha lhe dava e ela guardava para nós. Nem pelos 500 réis (cinqüenta centavos), que comprava todinho de bombons, pirulitos e doce gelado. É porque eu gostava muito dela mesmo! Como ainda hoje, a espero.
Foi também neste tempo que tive minha primeira experiência escolar. Minha mãe levou-me para o Patronato, que era perto da casa onde morávamos. Fez-me uma farda e uma sacola, onde levava a merenda, uma cartilha do ABC, um lápis e cadernos. Um deles, com o alfabeto. Era de caligrafia. Trabalho e dinheiro jogados no mato! Como não conseguia escrever igual às letras do caderno, ia mostrar à professora e ela achava lindo! Embora fosse muito pequena, entendia que estava bem feio! Em virtude disso, pensava que, ou ela não estava nem vendo ou não sabia mesmo! Isso foi muito ruim, pois eu já gostava dela. Porém comecei a olhá-la de outra forma... Se dissesse que não estava bom, mas que um dia eu ia conseguir, teria sido diferente. Quem sabe, teria evitado tantos problemas no futuro, quando tive mesmo que cair nas mãos da tia Maria Augusta...
Dois outros fatos contribuíram para eu sair da Escola. O pior deles foi que um dos meus irmãos que estava encarregado de me buscar, não foi. E eu fiquei lá, esperando e chorando que só! E as freiras, insensíveis, simplesmente me colocaram fora, na calçada e fecharam o colégio. Os carros passavam e eu morrendo de medo... Um guarda me viu chorando, conseguiu que eu dissesse onde morava, me pegou pela mão e foi me deixar em casa. Quando cheguei,estava todo mundo almoçando alegremente, em torno da mesa. Uma casa de tantos filhos e mais os agregados tinham, simplesmente, esquecido de mim! Isso aumentou a minha timidez e o medo de ser abandonada. Foi um trauma do qual a muito custo me recuperei.
Ao chegar o mês de maio, aconteceu um problema decisivo. A professora queria que eu fosse ser anjo. Já não gostei da idéia, por causa da minha irmã que virou anjo e terminou enterrada no cemitério. É preciso cuidado, quando se fala com as crianças. Mas depois de tantas explicações, acabei entendendo. No entanto, como eu era pequena e tinha uns cachos grandes e bonitos, ia ficar lá em cima de um altar bem alto, com mais 30 anjos. Já no ensaio, fiquei tonta. Disse, então, que não ia de jeito nenhum! Minha mãe foi chamada e não deu jeito. Emperrei e por isso saí da Escola.
Enquanto isso, a vida dos outros membros da família transcorria bem. Os meus irmãos quase não paravam em casa. Saíam para o Colégio Cearense. O meu pai comprou uma bicicleta para o Edson ir às aulas. Só que um dia ele foi atropelado, quase quebrando a perna de novo. Voltou a ir à aula de ônibus, com o Edilson. Ao regressar, passava muito tempo andando de bicicleta, na frente da casa da Gelma e Odaléia, duas moças que moravam nas vizinhanças. Minha mãe começou a ficar preocupada... O Edilson fez amizade com o Lourival. Passava muito tempo lá, estudando. Quando a minha mãe soube que o rapaz tinha duas irmãs, Neuba e Núbia, mais ou menos da idade do meu irmão, piorou muito mais! Como o Sr. Batista, pai deles, vivia mais em Paracuru, não teve mais sossego. “A pólvora perto do fogo, incendeia!” Como a minha mãe sofreu, cuidando da honra das moças do bairro...
Um belo dia, a Dona Laide, mãe do Lourival e das moças, foi lá em casa, conhecer “a mãe do filho dela!” Dizia isso, se referindo ao Edilson! Minha mãe não disse nada, apenas fuzilou-a com aquele seu olhar 33! Mas a nova mãe do Edilson, não se mancou! Sei bem que a minha mãe sofreu o resto da vida, por causa desta competição. No dia das mães, o Edilson queria dar presente para a outra também! Levou o caso ao conhecimento do meu pai. Foi muito pior! Quando ela conheceu o meu pai, dizia: “O nosso filho, hein, sr. Edgard, é o mais bonito e inteligente... o nome dele agora é Biguá.” (era o nome de um famoso jogador do Flamengo). Por fim, o Edilson queria levar os tecidos que a minha mãe comprava, para a Dona Laide fazer suas roupas. O jeito foi dar a volta por cima, e dizer: “Leva, leva para a tua mãe fazer!” As novas irmãs do Edilson eram muito diferentes... Imagine que usavam rabo de cavalo! E chegavam lá em casa com a nuca de fora e balançando aquele rabo... Não era coisa muito avançada?
As minhas irmãs também eram motivo de preocupação. Edna e Dilcinha resolveram pintar as unhas! Foi um sufoco. Quando meu pai viu, arrancou o esmalte com a tesoura. Até a Estella Maria começou a botar as “manguinhas de fora”. De vez em quando saía com as meninas maiores. Um dia o meu pai achou que ela estava muito corada, com os lábios vermelhos. Esperou-a com uma toalha. Assim que ela chegou, ele passou a toalha no rosto dela. Estavam lá as marcas do crime! A toalha ficou manchada de rouge e baton. Meu pai pegou na bolsa dela o rouge Royal Briar e o baton natural, que ela comprara com um dinheiro que a tia Rita lhe dera, porque lavara a casa todinha, para o aniversário da vovó. A caixinha de rouge e o baton foram quebrados e jogados no mato!
Mas a minha irmã era mesmo teimosa! Pois não é que pegou uns papéis de seda encarnados, molhava e passava no rosto?
Por isso ele vivia atento. Ao ver a Neuba e a Núbia balançando aqueles rabos de cavalo, cortou o cabelo da Edna, que era longo, bem curtinho, perto das orelhas. Ela só tinha pedido para ele aparar... a minha irmã chorou demais! Porém, como ele dizia, “tinha que cortar o mal pela raiz”... Anos depois, tanto ela quanto a Dilcinha balançavam também os seus longos rabos de cavalo. Por sorte delas, meu pai já deixara de ser o cabeleireiro da família...
Acredito que, pela preocupação que tinha com as minhas irmãs maiores, é que ele balançava a Ednir, na cadeira de balanço, cantando:
“Ai, ai, brotinho
Não cresça meu brotinho
E nem murche como a flor...

Meu brotinho
Por favor não cresça
Por favor, não cresça...”
Mas o pior, é que a Ednir não atendia a um pedido tão delicado! E ia crescendo... Era uma alegre e encantadora criança sorridente, com lábios tão coradinhos, como se usasse baton. As pessoas chegavam a criticar a minha mãe, por usar baton numa criança tão pequena...
Por ouví-lo cantar essa música para a minha irmã, perguntei para ele o que era um brotinho. Tenho quase a certeza de que o fiz, pensando se não daria um jeito de eu ser um brotinho também. Meu pai me falou que brotinho era uma coisinha pequena, que estava nascendo. Levou-me até o jardim e mostrou-me um pontinho verde, a despontar do galho de colibris da minha mãe. Fiquei olhando e ele disse que aquele pontinho viraria um galho, mostrando-me o galho marrom. Comentei, então, que o melhor era ficar mesmo um brotinho, do que aquele galho feio. Aí ele disse: “É, mas o galho se enfeita de folhas e flores...” Só que ele não deixava as minhas irmãs se enfeitarem... Isso, eu só pensei, mas não falei...
Os meus tios, Marcílio e Maristela e, depois o Manuel, filhos do vovô Rufino, foram morar conosco, para estudar. O tio Marcílio queria ser marinheiro, o que realmente conseguiu. Para nós, foi muito bom. O Marcílio, ao chegar, identificou-se logo com as meninas menores. Brincava muito conosco e ajudava ao meu pai e à minha mãe.

E Continua...